9- Fire Force: A Pirótécnica da Fé e A Vontade de Arder
( Assisto Evangelion não como entretenimento, mas como confissão involuntária. Como Shinji, já me senti um fantoche nas mãos de expectativas alheias (família, religião, carreira). Como Asuka, já usei a arrogância para esconder inseguranças. E como Rei, já me perguntei se sou mais que um aglomerado de traumas e desejos alheios.)
A série me confronta com perguntas que minha fé tenta responder:
“Como amar a Deus e ao próximo quando nos odiamos?”
“A redenção é possível sem autodestruição?”
Não tenho respostas, mas Evangelion me ensinou que fazer as perguntas certas já é um ato de coragem e nos tópicos abaixo tentarei esclarecer minha visão sobre essa obra que tanto amo.)
Neon Genesis Evangelion (1995) não é um simples anime — é um artefato cultural, um espelho rachado que refrata a angústia de uma geração nascida sob os escombros das grandes narrativas do século XX. Criado por Hideaki Anno em meio a um colapso psíquico pessoal — sua batalha pública contra a depressão —, a série transcende o rótulo de “mecha” para se tornar um manifesto existencialista, uma cartografia da fragilidade humana em um universo que substituiu deuses por burocracias e fé por algoritmos.
Anno não está contando uma história; está dissecando a psique coletiva do Japão pós-bolha econômica, um país que, nos anos 90, via sua identidade se dissolver entre suicídios corporativos, ataques terroristas (como o atentado com gás sarin no metrô de Tóquio) e o surgimento dos hikikomori — jovens que, como Shinji Ikari, escolhem o isolamento como refúgio contra um mundo hostil. Evangelion é, assim, um sintoma cultural, um diagnóstico clínico de uma sociedade que perdeu a capacidade de sonhar e, em seu lugar, ergueu monumentos à autodestruição.
A série opera em três camadas simultâneas:
Pessoal: Autobiografia cifrada da luta de Anno contra a depressão, onde os EVAs são tanto armas quanto metáforas de cápsulas antidepressivas — gigantes de metal que protegem da realidade, mas aprisionam na neurose.
Coletiva: Alegoria do Japão pós-guerra, traumatizado por Hiroshima e Nagasaki, agora assombrado por novas catástrofes (os “Impactos”) que ecoam o medo de desastres nucleares e ambientais.
Universal: Questionamento filosófico sobre o sentido da existência em um cosmos indiferente, onde a humanidade é acidental e Deus, quando existe, é um voyeur sádico.
Shinji Ikari, o protagonista de 14 anos forçado a pilotar um EVA, não é um herói — é um retrato geracional. Sua apatia, sua necessidade patológica de validação (“Se eu pilotar, meu pai vai me elogiar?”), e sua incapacidade de se conectar com outros seres humanos ressoam com a juventude da era digital, que cresceu em um mundo hiperconectado, mas profundamente solitário. Enquanto Dragon Ball Z glorificava o esforço hercúleo e Sailor Moon celebrava o poder da amizade, Evangelion sussurra: “E se o esforço for inútil? E se a amizade for uma ilusão?”.
A obra é uma crítica ao neoliberalismo emergente dos anos 90, que transformou seres humanos em engrenagens descartáveis. A NERV, organização que comanda os EVAs, não é diferente de uma corporação moderna: explora seus funcionários (os pilotos são literalmente consumidos por suas máquinas), manipula informações e sacrifica vidas em nome de um “bem maior” que ninguém compreende. Em um paralelo perturbador com o conceito de capitalismo tardio de Frederic Jameson, os personagens de Evangelion são prisioneiros de um sistema que os define por sua utilidade — Shinji vale apenas enquanto piloto, Asuka enquanto prodígio, Rei enquanto ferramenta.
A religiosidade na série — repleta de símbolos cabalísticos, cristãos e budistas — não é um convite à espiritualidade, mas um comentário sobre o vazio pós-religioso. A Lança de Longinus, a Árvore da Vida e os Anjos são fetichizados, esvaziados de significado transcendente e reduzidos a armas ou códigos de acesso. É como se Anno dissesse: “Deus está morto, e nós o substituímos por manuais técnicos e reuniões de diretoria.”
Ao fundir psicanálise, filosofia e crítica social em uma narrativa distópica, Evangelion antecipou debates do século XXI:
A crise das masculinidades tóxicas (Gendo Ikari como o pai ausente e autoritário; Shinji como o filho incapaz de performar força).
A alienação tecnológica (os EVAs, máquinas orgânicas que parasitam seus pilotos, prefiguram nossa dependência de algoritmos).
A epidemia de saúde mental (Asuka Langley Soryu, com sua depressão mascarada por arrogância, é a antepassada fictícia dos influencers que escondem crises de ansiedade atrás de filtros).
Esta análise não é apenas uma resenha — é uma autópsia do mal-estar contemporâneo. Através das lentes de Evangelion, exploraremos como uma obra de ficção pode ser mais verdadeira que qualquer tratado filosófico, e por que, quase 30 anos depois, ainda nos vemos refletidos no olhar perdido de Shinji Ikari, à espera de um “parabéns” que nunca virá.
Prepare-se: adentraremos não apenas o universo da série, mas os abismos que ela revela em nós.
I. O Vazio Pós-Moderno e o Colapso das Metanarrativas
Neon Genesis Evangelion não ocorre em um futuro distópico — é um retrato especular do presente, onde a humanidade, esgotada de esperança, se arrasta entre os escombros de suas próprias ilusões. O "Impacto" que inaugura a narrativa — um evento cataclísmico de origem ambígua — não é apenas uma desculpa para robôs gigantes; é uma alegoria da morte das metanarrativas (Lyotard) que sustentavam a civilização: Deus, Progresso, Razão, Família. Em seu lugar, restam apenas burocracias tecnocráticas (a NERV) e símbolos religiosos esvaziados (a Lança de Longinus como arma, não relíquia).
Os Anjos não são antagonistas no sentido clássico. São entidades ontologicamente incompreensíveis, formas de vida que desafiam categorias humanas de entendimento. Sua existência — e seus ataques — encarnam o Absurdo camusiano em sua forma mais pura:
Sachiel, o terceiro anjo, não ataca por malícia, mas por existir. Seu corpo geométrico e movimentos caóticos são uma negação da lógica, lembrando que o universo não se importa com nossas expectativas.
Ramiel, o quinto anjo, é um cristal que emite um grito ultrassônico — uma metáfora da incomunicabilidade radical (Heidegger). Sua forma perfeita e impenetrável simboliza o abismo entre o humano e o Outro, entre sujeito e objeto.
Esses seres não são "malignos"; são testemunhas da insignificância humana. Ao exigir que os EVAs (máquinas biossintéticas) combatam os Anjos, a série sugere que só podemos enfrentar o Absurdo com ferramentas igualmente alienígenas — como se a tecnologia fosse um espelho deformado de nossa própria estranheza existencial.
Tóquio-3, com sua cidade subterrânea (Geofront), é um símbolo da condição humana pós-metafísica. Suas paredes fortificadas não protegem apenas de ataques externos; são uma cápsula contra o vazio cósmico. Em um mundo sem Deus, construímos refúgios materiais (shoppings, redes sociais, reality shows) para evitar o confronto com perguntas sem resposta:
A Geofront é o inconsciente coletivo: Um espaço subterrâneo onde monstros (EVAs) e traumas (os pilotos) são armazenados, longe da luz da consciência.
A falsa normalidade da superfície: Enquanto monstros lutam abaixo, a vida cotidiana continua — uma crítica à banalização do horror na era da informação, onde tragédias são reduzidas a cliques e hashtags.
Essa dicotomia ecoa a sociedade do cansaço (Byung-Chul Han): vivemos em bunkers psicológicos, entretidos por estímulos vazios, enquanto o mundo desmorona. A Geofront é, assim, uma metáfora da transparência totalitária — um espaço vigiado pela NERV, onde até as emoções são instrumentalizadas ("Sincronize com o EVA ou morra").
Shinji não é um protagonista — é um sintoma clínico de uma época. Sua motivação para pilotar o EVA ("Se eu fizer isso, meu pai vai me amar?") expõe a crise de sentido da pós-modernidade:
A Orfandade Espiritual:
A ausência de Gendo Ikari (pai e deus absconditus) reflete a morte do Pai simbólico (Lacan) — a autoridade moral que organizava o desejo. Shinji busca preencher esse vazio com a aprovação de substitutos falidos: a NERV (Estado), Misato (mãe substituta), Kaworu (amor impossível).
A Busca por Validação em um Mundo de Mercadorias:
Em uma sociedade onde até o afeto é transacionado (Misato troca cuidado por desempenho em batalha), Shinji personifica a alienação do trabalhador precário (Marx). Pilotar o EVA é seu emprego, e seu salário é migalhas de atenção.
A Recusa como Último Ato de Liberdade:
Quando Shinji se recusa a lutar (episódio 19), ele não está sendo covarde — está realizando um ato de desobediência civil existencial. É um gesto que ecoa Bartleby, o escrivão de Melville ("Preferiria não fazer"), recusando-se a participar de um jogo onde as regras são definidas por ausentes.
A NERV e seus Evangelions não são instituições de salvação — são paródias das antigas religiões de Estado. Cada EVA é um sarcófago tecnológico, um útero de metal onde os pilotos regridem a um estado fetal (a sincronização exige desnudamento emocional e físico). Aqui, Anno antecipa o transumanismo distópico:
Os EVAs como próteses existenciais: Máquinas que substituem a autenticidade humana por eficiência bélica.
A Instrumentalidade Humana como Última Metanarrativa: O Projeto de Complementação promete unificar a humanidade, mas é apenas outra utopia totalitária (como o comunismo stalinista ou o capitalismo neoliberal), onde a individualidade é sacrificada em nome de um "bem maior" indefinido.
O clímax da série — o Terceiro Impacto — não é um apocalipse, mas uma alegoria do triunfo do niilismo. Enquanto Francis Fukuyama proclamava o "fim da história" com a vitória do liberalismo, Anno retrata esse fim como dissolução da identidade humana em um caldo primordial de LCL.
A Líquido LCL: Metáfora da liquidez moderna (Bauman), onde relações e valores se desmancham em fluidez inconsequente.
A Voluntária Desistência de Shinji: Ao rejeitar a Instrumentalidade ("Eu prefiro ser eu mesmo"), ele não encontra uma resposta — apenas aceita que viver sem sentido é o único sentido possível.
Evangelion não oferece consolo. Seu legado filosófico está em expor o vazio não como falha, mas como fundamento. Como escreveu Sartre: "O homem está condenado a ser livre". Shinji Ikari é o náufrago dessa liberdade — um menino que, ao final, entende que o "parabéns" que buscava nunca existiu, e que a única saída é criar significado em um mundo que ri de nossas pretensões.
Na próxima seção, mergulharemos na Jaula de Cristal da Autoaversão, onde a relação de Shinji consigo mesmo espelha nossa guerra interna entre o desejo de existir e o impulso de desaparecer.
Shinji Ikari não é um personagem — é um sintoma geracional encapsulado em carne e osso, uma manifestação da contradição humana elevada à potência trágica. Sua recusa em pilotar o EVA, frequentemente lida como covardia ou fraqueza, é na verdade um ato de resistência filosófica contra um mundo que exige desempenho como moeda de afeto. Quando ele hesita diante da cabine do EVA, não está temendo a morte física, mas a morte simbólica de se tornar mais uma engrenagem na máquina da NERV — uma instituição que substituiu a ética por eficiência e a compaixão por relatórios de sincronização. A frase "Se eu fugir agora, vou me odiar para sempre" não é um dilema moral, mas um paradoxo existencial que encapsula o cerne do Dilema do Ouriço, teorizado por Schopenhauer e apropriado por Freud: a proximidade com outros seres fere, mas a solidão corrói. Shinji não escolhe entre dor e alívio; escolhe entre dois tipos de dor — a da rejeição ou a do autoapagamento.
Essa dinâmica é amplificada pela relação sádico-masoquista que ele desenvolve consigo mesmo. Pilotar o EVA, mergulhando naquele útero mecânico que simula conexão humana através de cabos neuronais, é um ritual de automutilação emocional. Cada batalha é uma repetição compulsiva do trauma original (a perda da mãe, a rejeição do pai), onde Shinji, como um mártir secular, oferece seu corpo e psique em sacrifício a um deus que não responde. Sua paralisia diante do Anjo Leliel — uma esfera negra que o engole em um vácuo de antimatéria — não é falha técnica, mas surrender existencial, um desejo inconsciente de ser devorado pelo vazio, de deixar de existir sem o incômodo de ter que se matar. A cena, filmada em tons de azul mortiço e silêncio opressivo, ecoa a descrição de Sartre sobre o náusea: a vertigem de perceber que a existência precede a essência, e que estamos condenados a inventar significado em um universo que nos nega até mesmo o direito ao desespero elegante.
O medo primordial de Shinji — "Não me deixe sozinho" — reverbera além da tela, encontrando eco em uma geração que transformou a solidão em pandemia silenciosa. Nas redes sociais, performamos versões aceitáveis de nós mesmos (como Asuka com sua máscara de confiança), enquanto internamente nos reconhecemos na voz trêmula de Shinji implorando por conexão. A série antecipou a crise de saúde mental dos millennials e zoomers, presos entre a pressão por otimismo tóxico ("Seja sua melhor versão!") e a realidade de economias em colapso, relações líquidas (Bauman) e um futuro ecologicamente incerto. A sincronização com o EVA, processo que exige que o piloto se desnude emocionalmente para fundir-se com a máquina, é uma metáfora grotesca da cultura da exposição moderna, onde vulnerabilidade virou commodity e traumas são exibidos como troféus em busca de likes.
A autoaversão de Shinji não é patologia individual, mas síndrome cultural. Em um mundo pós-religioso, onde até mesmo o ateísmo virou dogma, o ódio a si mesmo substituiu o pecado original como narrativa fundadora. Gendo Ikari, o pai-deus ausente, não precisa punir Shinji — o garoto internalizou o julgamento divino, tornando-se carrasco e vítima. Quando ele se fere pilotando o EVA (sangrando, gritando, sendo consumido pelo ódio ao ver Rei substituí-lo), está reencenando o mito de Prometeu em escala íntima: rouba o fogo dos deuses (o poder do EVA) para alimentar uma humanidade que nunca lhe agradecerá, pagando o preço em autorreciclagem de dor.
A genialidade de Anno está em nunca oferecer redenção fácil. Ao contrário de personagens como Naruto ou Goku, cujas jornadas são linearidades heroicas, Shinji permanece preso no labirinto de sua própria psique. Sua recusa final no Episódio 26 — "Não quero pilotar! Não quero mais machucar ninguém!" — não é triunfo, mas rendição. Ele não supera o Dilema do Ouriço; reconhece sua insolubilidade. Em uma cena que antecipou a estética dos memes depressivos e dos fóruns de saúde mental online, Shinji senta-se em uma cadeira vazia num palco surreal, confrontado por projeções de pessoas que o acusam, exigem, imploram. O cenário branco e infinito é o não-lugar da pós-modernidade, onde identidades são performadas para plateias invisíveis e o único diálogo possível é o monólogo.
Para aqueles que lutaram ou lutam com a ansiedade, Shinji não é personagem — é espelho desfigurado. Suas crises de pânico dentro do EVA (mãos trêmulas, respiração ofegante, visão turva) são retratadas com uma crueza que desarma. Não há trilha sonora épica para glorificar sua dor, apenas o som de fluidos corporais e metralhadoras neuronais. Quando ele grita "Saia da minha cabeça!" durante a invasão psíquica do Anjo Arael, é impossível não ouvir o eco de nossas próprias batalhas contra pensamentos intrusivos, contra a voz interior que sussurra "Você não é suficiente".
No fim, a jaula de cristal da autoaversão não se quebra — ela se multiplica em fractais. Shinji não encontra amor-próprio, apenas a resignação de que existir é habitar a contradição. Como escreveu Kierkegaard, "A vida só pode ser entendida olhando-se para trás, mas deve ser vivida para frente". Shinji Ikari, o anti-herói que preferia não existir, nos ensina que a única saída é seguir pilotando, mesmo quando o EVA sangra, mesmo quando o "parabéns" nunca vier — porque no ato de resistir, mesmo sem esperança, reside um tipo peculiar de beleza trágica.
A relação entre Shinji Ikari e Kaworu Nagisa — o 17º Anjo e o "garoto perfeito" — é um dos momentos mais poéticos e perturbadores de Neon Genesis Evangelion. Em apenas um episódio, Hideaki Anno constrói uma dinâmica que desafia normas de gênero, explora a fluidez do desejo e questiona se o amor pode ser redentor em um universo absurdo. Essa relação não é apenas sobre homoafetividade; é sobre a solidão de existir em um mundo que rejeita conexões autênticas.
Kaworu é introduzido como uma figura messiânica:
Aparência andrógina e discurso sereno, contrastando com a brutalidade dos outros Anjos.
Gestos de intimidade física (tocar o rosto de Shinji, compartilhar um banho) que rompem as barreiras do que é "aceitável" em um protagonista shonen.
Declarações explícitas de afeto: "Eu amo você", diz Kaworu, sem hesitar.
Sua figura ecoa o arquétipo do Salvador (Jung), mas invertido: ele não veio salvar a humanidade, mas destruí-la. Seu amor por Shinji é genuíno, mas também instrumental — ele precisa morrer para cumprir seu destino. Aqui, Anno subverte a tradição cristã: o sacrifício não redime, apenas aprofunda a dor.
Shinji, criado em um ambiente de abandono emocional (pai ausente, mãe morta), nunca aprendeu a nomear seus desejos. Sua atração por Kaworu surge como um raio em um céu nublado:
Física, mas não sexualizada: A cena do banho é sobre vulnerabilidade compartilhada, não voyeurismo.
Emocional, mas não romantizada: Shinji não entende o que sente — só sabe que, pela primeira vez, alguém o vê sem julgamento.
Essa ambiguidade reflete a confusão da adolescência, onde identidade e desejo são labirintos sem mapa. Em uma sociedade japonesa ainda conservadora nos anos 90, a representação de Shinji aceitando passivamente o afeto de outro homem foi revolucionária. Não é sobre homo ou heterossexualidade, mas sobre a necessidade humana de ser amado, independente de rótulos.
3. A Traição Final: Quando o Amor é uma Mentira Existencial
A revelação de que Kaworu é um Anjo — e, portanto, deve ser destruído — transforma o único relacionamento saudável de Shinji em uma alegoria do fracasso humano.
Shinji é forçado a matar quem o amou: Um ato que repete seu trauma original (rejeição paterna), mas agora por sua própria mão.
Kaworu aceita a morte como ato de amor: "Não é errado buscar a felicidade", ele diz, enquanto Shinji o esmaga.
Aqui, Anno parece dizer: o amor, em um mundo sem Deus, é sempre uma faca de dois gumes. A cena ecoa o mito de Orfeu e Eurídice — Shinji olha para trás (mata Kaworu) e perde o que mais desejava.
A relação Shinji-Kaworu não é somente a de um "casal LGBTQ+", mas um experimento narrativo sobre isolamento:
Kaworu transcende gênero e espécie: Ele não é homem, mulher ou humano — é um ser que escolhe amar fora das categorias.
Shinji representa a geração perdida: Jovens que, na década de 90, enfrentavam a crise econômica do Japão e a ascensão da cultura hikikomori (isolamento social).
A rejeição de Shinji ao toque de Kaworu (antes de cedera) espelha o medo pós-AIDS de intimidade física, onde o contato é tanto desejo quanto risco.
Quase 30 anos depois, o episódio 24 continua a dividir opiniões. Para alguns, é uma cena de amor; para outros, "apenas" amizade. Essa ambiguidade proposital revela:
A homofobia internalizada da indústria: Em 2021, um remake (Rebuild of Evangelion) suavizou a cena do banho, apagando a tensão erótica original.
A solidão como universal: Independente de orientação sexual, todos se identificam com Shinji — um garoto que só queria ser amado, mas foi traído pelo universo.
Os AT Fields em Evangelion são barreiras mentais que isolam os humanos uns dos outros. Shinji e Kaworu, por um instante, derrubam as suas — e pagam o preço.
Como espectador e crítico, vejo nessa relação não a de somente um "casal queer", mas um símbolo da impossibilidade (e necessidade) de conexão verdadeira. Em um mundo onde identidades são performadas (Asuka), negadas (Rei) ou instrumentalizadas (Gendo), Shinji e Kaworu oferecem um vislumbre de autenticidade — mesmo que efêmera.
Em última análise, Evangelion nos pergunta:
"Vale a pena amar sabendo que a dor é inevitável?"
A resposta de Shinji — chorar, gritar, mas seguir vivo — é a mesma que muitos de nós damos todos os dias.
Asuka não é apenas uma piloto talentosa — é uma vítima sacrificial da sociedade do cansaço (Byung-Chul Han). Sua obsessão por ser "a melhor" — gritada em batalhas, exigida em rankings de sincronização — é uma máscara de aço forjada no fogo da rejeição. Órfã de uma mãe enlouquecida e de um pai que a trocou por uma carreira, Asuka internalizou a lógica neoliberal de que valor humano = desempenho. Cada vitória no EVA não é triunfo, mas automutilação simbólica: quanto mais ela se prova, mais enterra sua criança assustada sob camadas de ironia cáustica e sexualidade performática (como no episódio 22, onde beija Shinji não por desejo, mas para afirmar domínio).
Sua queda — da prodígia arrogante à catatonia no leito hospitalar — não é um colapso, mas um desnudamento ontológico. Quando o EVA-02 falha (episódio 23), é seu self fictício que se desintegra, revelando o vórtice de insegurança sob a máscara. A cena em que ela se agarra ao EVA inerte, gritando "Por que ninguém me elogia?!", ecoa a angústia da geração burnout: em um mundo onde likes substituíram abraços, até o sucesso é um grito no vácuo. Asuka é a paródia trágica do "faça você mesmo" — uma menina que acreditou que poderia conquistar amor através de medalhas, só para descobrir que troféus não preenchem buracos de afeto.
Rei Ayanami: O Vazio como Tela de Projeção e a Angústia do Não-Ser
Rei não é um personagem — é um exercício de filosofia existencial em forma de anime. Clone descartável, vaso da alma de Lilith, substituta materna para Shinji: ela existe apenas como superfície de projeção para desejos alheios. Sua pergunta "Por que eu existo?" (episódio 23) não é uma inquietação adolescente, mas um grito primordial contra a absurdidade do ser. Em sua impassibilidade quase robótica, Rei encarna o paradoxo de Sartre: "A existência precede a essência". Ela não tem uma "natureza" — é definida pelo uso que outros fazem de seu corpo (Gendo), sua alma (a NERV) e até sua morte (sempre substituível pela Rei III, Rei IV...).
Sua relação com Gendo Ikari é um estudo de fetichismo existencial. Ele a trata como um ícone religioso (o receptáculo de Lilith), um substituto para Yui (sua esposa morta) e uma ferramenta descartável. Quando Rei questiona "Quem sou eu para você?" e recebe silêncio como resposta, Anno expõe a violência da coisificação pós-moderna: em um mundo de relações descartáveis, até humanos são reduzidos a funções (Rei é "a piloto zero", "o clone", "o vaso").
O Espelho Quebrado: Performar ou Ser Projetado?
Asuka e Rei personificam dois polos da crise identitária moderna:
Asuka representa a hiperatividade narcísica — a compulsão a performar excelência em redes sociais, carreiras e relacionamentos, onde o self é uma marca a ser otimizada.
Rei encarna a passividade esquizóide — a resignação em ser moldado por algoritmos, expectativas parentais ou demandas do mercado, onde o self é argila nas mãos de oleiros invisíveis.
A cena em que Asuka e Rei se enfrentam no elevador (episódio 9) — uma cheia de ódio, outra vazia de emoção — é uma alegoria da fragmentação psíquica. Não há diálogo, apenas monólogos cruzados. Asuka cospe verdades cortantes; Rei absorve como um buraco negro. É o encontro entre dois modos de falhar em ser humano: um por excesso de persona, outro por ausência de si.
A dinâmica entre Asuka e Rei reflete a tensão cultural japonesa entre honné (eu verdadeiro) e tatemae (fachada social). Asuka é puro tatemae — uma máscara de competitividade e sexualidade que esconde uma criança aterrorizada. Rei é a negação do honné — um ser sem "eu" interior, cuja existência é definida pelo papel que cumpre para outros. Em um país onde taxas de suicídio e hikikomori revelam o custo da pressão social, Anno usa essas personagens para questionar: é possível existir autenticamente em uma sociedade que exige desempenho e submissão simultâneos?
No episódio 25, durante o Terceiro Impacto, Asuka e Rei enfrentam versões invertidas de si mesmas. Asuka é confrontada por uma multidão de clones que riem de sua inadequação; Rei se funde com Lilith em um ato de autonegação cósmica. Essas cenas são pesadelos literais das identidades que elas performaram:
Asuka descobre que sua persona de "melhor piloto" era uma ficção sustentada por mentiras (sua mãe morta-viva, sua sincronização em queda).
Rei compreende que sua existência sempre foi um instrumento para o projeto de Gendo.
Aqui, a série ecoa Lacan: o eu é uma ficção, uma narrativa que contamos para navegar um mundo sem sentido. Asuka e Rei fracassam não por fraqueza, mas por serem vítimas de um jogo de espelhos onde nem mesmo os reflexos são reais.
Asuka e Rei não encontram redenção — encontram verdades que as destroem. Asuka, ao perceber que ninguém a ama pelo que é (apenas pelo que faz), mergulha na catatonia. Rei, ao escolher se sacrificar por Shinji ("Se eu for ele, posso ser eu mesma?"), dissolve-se em LCL. Suas jornadas são advertências:
Performar demais (Asuka) leva à exaustão e ao ódio de si.
Ser projetado demais (Rei) leva à aniquilação do eu.
Em um mundo onde redes sociais nos transformam em Asukas (curtidas como validação) e algoritmos nos reduzem a Reis (dados moldáveis), Evangelion pergunta: Há espaço para autenticidade quando até nossos desejos são produtos de um sistema que nos nega? A resposta, como o silêncio de Rei, permanece suspensa — mas a pergunta ecoa, urgente, em cada like dado por obrigação e cada papel aceito por medo.
A Instrumentalidade ecoa o mito da Queda de forma invertida. Se Adão e Eva foram expulsos do Paraíso por buscarem conhecimento, Gendo e SEELE prometem um retorno ao Éden através da ignorância voluntária — a dissolução da individualidade em um limbo amniótico onde dor, identidade e responsabilidade são apagadas. O LCL, líquido primordial que reduz humanos a protoplasma, é a fruta proibida desiludida: não concede sabedoria, apenas apatia. Shinji, ao rejeitar essa "redenção", repete o gesto de Adão não por virtude, mas por reconhecer que a liberdade — mesmo que agonizante — é preferível ao paraíso da inconsciência.
Essa dinâmica expõe o cerne do niilismo passivo de Schopenhauer: a negação da vontade como única saída para o sofrimento. Mas enquanto Schopenhauer via na ascese um caminho, a Instrumentalidade oferece um suicídio coletivo disfarçado de utopia. A série, porém, subverte essa lógica: ao escolher voltar ao mundo real ("Eu prefiro ser eu mesmo"), Shinji abraça o existencialismo radical de Sartre — "O inferno são os outros", mas é apenas no inferno das relações que a vida adquire textura.
Anno pilota os ícones cristãos como armas de desencanto:
A Lança de Longinus: Instrumento que perfura o coração de Deus (Lilith), tornando-se ferramenta de engenharia cósmica. Não há milagre aqui, apenas física aplicada.
A Crucificação do EVA-01: Shinji pendurado na cruz não é um mártir — é um Cristo pós-moderno, sacrificado não por salvar a humanidade, mas por sua recusa em salvá-la. A imagem ecoa a geração que herdou o fardo do pecado original (mudanças climáticas, colapsos econômicos) sem a promessa de ressurreição.
Os Anjos: Nomeados como seres bíblicos (Sachiel, Ramiel), mas destituídos de propósito divino. São Deus-Jó revisitado — entidades que atormentam os humanos não por teste de fé, mas por pura indiferença ontológica.
Como cristão, vejo aqui uma tensão dialética: há blasfêmia na apropriação, mas também uma nostalgia inconsciente do transcendente. A série pergunta: "Se Deus está morto, quem carrega nossa culpa?" A resposta é um silêncio que ecoa de Gólgota a Hiroshima — nós mesmos.
Shinji Ikari é o santo padroeiro dos descrentes, uma figura que encontra redenção não na graça divina, mas na aceitação do fracasso. Quando ele recusa a Instrumentalidade, não está escolhendo a vida — está escolhendo a possibilidade de falhar, de machucar e ser machucado, de existir em um mundo onde o amor é sempre inadequado e o perdão nunca completo.
Essa decisão ecoa a máxima de Albert Camus em O Mito de Sísifo:
"É preciso imaginar Sísifo feliz."
Shinji, como Sísifo, entende que o fardo de existir só tem significado se carregado com plena consciência de sua absurdidade. Sua "fé" não está em Deus, na NERV ou em si mesmo — está no ato de continuar, mesmo sabendo que o "parabéns" que busca (do pai, de Misato, do público) nunca será suficiente.
Evangelion não é anticristã — é pós-cristã. Ao esvaziar símbolos sagrados de seu conteúdo transcendente, a série revela que mesmo em um mundo secularizado, o impulso religioso persiste como neurose coletiva. A Instrumentalidade é, ela mesma, um ritual apocalíptico sem deus, uma tentativa desesperada de preencher o vazio deixado pela morte das metanarrativas.
Shinji, ao rejeitar esse pseudo-paraíso, não encontra Deus — encontra a responsabilidade de criar significado em um universo mudo. Nesse gesto, há um eco involuntário da teologia cristã: a ideia de que a verdadeira redenção não está na fuga do sofrimento, mas na transformação do sofrimento em ponte para o outro.
A crucificação do EVA-01 e a Instrumentalidade são dois lados da mesma moeda: tentativas falhas de lidar com o vazio deixado pela ausência divina. A série nos deixa com uma pergunta que ressoa tanto em ateus quanto em crentes:
"Podemos suportar a liberdade de sermos deuses em um universo sem céu?"
A resposta de Shinji — trêmula, imperfeita, humana — é um ato de fé secular: escolher a dor da existência autêntica sobre o êxtase da ilusão coletiva. Nisso, Evangelion torna-se, involuntariamente, um dos textos mais profundamente espirituais da cultura pop — não por oferecer respostas, mas por forçar-nos a confrontar as perguntas que escondemos até de nós mesmos.
Shinji Ikari, ao recusar a Instrumentalidade e retornar ao mundo real, não encontra redenção — encontra a coragem de habitar a pergunta. Seu "parabéns" não virá, mas em seu lugar surge algo mais radical: a aceitação de que a vida não é um problema a ser resolvido, mas um paradoxo a ser vivido. Nesse gesto, Evangelion ecoa Camus: "Não há solução para o absurdo, mas há consequências. Revoltar-se é uma delas." Revolta aqui não é violência, mas a recusa em trocar a liberdade dolorosa pela paz morta.
A metáfora do espelho quebrado é central. Cada fragmento reflete uma faceta do dilema humano:
O caco que mostra Shinji chorando é a vulnerabilidade que escondemos sob máscaras de produtividade.
O que reflete Asuka sangrando é a farsa da autoimagem construída sobre mentiras.
O que captura Rei dissolvendo-se é a angústia de existir como projeção dos desejos alheios.
Juntos, esses estilhaços compõem um mosaico do mal-estar contemporâneo: somos todos Shinji, mas também Asuka, Rei, Misato e até Gendo. A série não nos oferece cola para remontar o espelho — nos força a encarar que a verdade está na fractura, não na totalidade.
Quando a série sugere que "qualquer um pode se amar", não está pregando autoajuda barata. Está declarando que amar a si mesmo é o ato político definitivo em um mundo que lucra com nossa autoaversão. Em uma era de influencers e otimização pessoal, onde até a espiritualidade virou produto, Evangelion lembra que a única revolução possível começa no olhar para o abismo interno sem desviar os olhos e encontrar a própria liberdade.
Shinji não aprende a "se amar"; aprende a suportar-se. Essa nuance é vital: não há conquista, apenas trégua. Como escreveu o poeta Paul Celan após o Holocausto: "Ninguém testemunha para a testemunha." Shinji é a testemunha de sua própria falência, e é nessa autenticidade desesperada que reside sua grandeza.
Deus Morto, Humanos Vivos: Cantando no Deserto
A série enterra Deus
Na narrativa: Símbolos cristãos são esvaziados, reduzidos a ferramentas de destruição.
Mas na ausência divina, Evangelion encontra uma espiritualidade secular: a fé no outro, mesmo quando o outro é falho, cruel ou incompreensível. Shinji, ao final, não abraça Misato, Asuka ou Rei — abraça a possibilidade de falhar com eles de novo, e nisso há uma santidade profana.
Assistir Evangelion não é entretenimento — é iniciação. Cada geração que enfrenta seus episódios emerge transformada, carregando cicatrizes diferentes:
Os anos 90 viram a crítica ao capitalismo pós-bolha.
Os anos 2000 enxergaram o prenúncio da crise de saúde mental.
Os anos 2020 veem um manual de sobrevivência em tempos de colapso ecológico e inteligência artificial.
A série é um organismo vivo, mutante, que refrata as angústias de cada época. Seu final aberto não é falha — é generosidade. Anno nos entrega não um fechamento, mas um espelho sujo, dizendo: "Façam com ele o que quiserem. Ou nada."
"Assistir Evangelion é como ser abandonado em um deserto com um quebra-cabeça de espelhos. Cada fragmento corta, cada reflexo confunde. Mas é na areia, entre sangue e suor, que descobrimos que o deserto não é vazio — é pleno de estrelas. E que basta erguer os olhos, mesmo sem garantias, para seguir caminhando."
P.S.: Se você terminou a série e ainda se sente perdido(a), saiba que Hideaki Anno também se sente. Em uma entrevista, ele admitiu: "Não sei o que Evangelion significa." Talvez essa seja a maior lição: a sabedoria está em habitar a pergunta, não em possuir a resposta.
A jornada só começa quando os créditos rolam. O resto é silêncio — e, talvez, um suspiro de alívio por ainda estarmos vivos para ouvi-lo.
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