9- Fire Force: A Pirótécnica da Fé e A Vontade de Arder
(Uma análise sobre como Yoshihiro Togashi transcende gêneros para explorar a ética, o poder e a busca por significado em um mundo pós-metafísico)
A obra se passa em um mundo onde caçadores — indivíduos com licenças que os tornam acima da lei — perseguem objetivos tão variados quanto caçar tesouros, espécies raras ou mesmo outros humanos. Essa premissa, aparentemente simples, esconde uma pergunta incômoda: O que move alguém em um mundo sem sentido maior? Gon Freecss, o protagonista, inicia sua jornada para encontrar o pai ausente, Ging, mas essa busca logo se revela uma armadilha narrativa. Ging não é um objetivo, mas um símbolo do vazio: quanto mais Gon se aproxima dele, mais descobre que a resposta não está no destino, mas nas fissuras da própria jornada.
Togashi não apenas quebra expectativas — ele as desmonta e remonta em formas perturbadoras. Por exemplo:
O Esforço Não Garante Nada: Em Naruto, o treinamento árduo leva à vitória; em Hunter x Hunter, Gon sacrifica anos de sua vida para confrontar Pitou (Formiga Quimera), mas sua vitória é pyrrhic: ele destrói seu corpo e moralidade, tornando-se um monstro.
A Amizade como Faca de Dois Gumes: Killua e Gon não são "melhores amigos" no sentido açucarado de One Piece. Sua relação é tóxica e codependente — Killua se anula para salvar Gon, enquanto Gon o manipula inconscientemente.
A Morte como Consequência, Não como Drama: Personagens morrem de forma abrupta e antiheroica (como Kite, decapitado por Pitou no início do arco das Formigas). Não há discursos de despedida, apenas o silêncio cortante da irreversibilidade.
Hunter x Hunter reflete a crise existencial do homem contemporâneo, que, desencantado com metanarrativas (religião, ideologias, progresso), se vê obrigado a inventar significado em um universo que não oferece respostas. Gon é o homem moderno em miniatura:
Sua busca por Ging ecoa a busca por um Deus morto (Nietzsche), um pai que promete sentido, mas só oferece ausência.
Sua transformação em monstro no arco das Formigas Quimera é uma alegoria do niilismo ativo: a destruição como única forma de preencher o vazio.
Enquanto One Piece celebra a liberdade como utopia coletiva ("o tesouro está nos amigos que fizemos"), Hunter x Hunter pergunta: "Liberdade para quê?". A Licença de Caçador, símbolo máximo dessa liberdade, é um passe para o abismo: ela permite tudo, exceto escapar de si mesmo.
Togashi usa o traço aparentemente simples do mangá para criar contrastes brutais. Suas páginas são minimalistas até explodirem em detalhes grotescos (como o corpo deformado de Gon após usar seu Nen para envelhecer). Essa dualidade visual espelha a estrutura narrativa: o mangá alterna entre episódios leves (como o arco de Greed Island, que parodia RPGs) e mergulhos abissais na escuridão humana (o genocídio das Formigas Quimera).
Até mesmo o humor em Hunter x Hunter é subversivo. Hisoka, o palhaço sádico, ri enquanto comete atrocidades — uma crítica ao absurdo camusiano, onde o riso é a única resposta à falta de sentido.
Enquanto outros autores de shonen tentam inovar com plot twists ou power-ups, Togashi faz algo mais radical: ele humaniza o desumano. Meruem, o Rei Quimera, começa como um predador amoral, mas sua relação com Komugi (uma humana frágil) o transforma em uma figura trágica, mais "humana" que seus algozes. Essa complexidade é rara até em obras literárias — quiçá em um mangá.
Além disso, Togashi rejeita o moralismo binário. Os Phantom Troupe, por exemplo, são assassinos em massa, mas também uma família disfuncional que chora a morte de seus membros. Não há vilões, apenas pessoas que escolheram (ou foram forçadas a) viver na sombra.
Hunter x Hunter não é uma história sobre heróis. É uma autópsia da humanidade, onde Togashi expõe vísceras filosóficas com a precisão de quem sabe que a cura só vem após o diagnóstico. Enquanto o shonen tradicional entretém, esta obra inquieta — e é nessa inquietação que reside sua genialidade.
Na próxima seção, mergulharemos na Licença de Caçador como símbolo do vazio pós-moderno, explorando como Togashi transforma um troféu de papel em um espelho da alma humana.
Gon Freecss, o protagonista ingênuo de olhos verdes e coração aberto, personifica essa busca. Sua jornada para encontrar Ging, o pai que o abandonou, não é apenas uma trama familiar, mas uma alegoria da crise edipiana elevada ao nível cósmico. Ging não é um mero pai ausente; ele é o arquétipo do Pai Primordial, uma figura que encarna a promessa de completude. Como um Ícaro moderno, Gon voa em direção a esse sol simbólico, ignorando que quanto mais alto sobe, mais suas asas de cera — sua inocência, sua moralidade — derretem.
Quando Gon finalmente encontra Ging, no ápice do arco da Ilha dos Jogos, o anticlímax é calculado com crueldade cirúrgica. Ging não é um deus ou um tirano, mas um homem comum amplificado: egoísta, genial, emocionalmente incapaz. Ele não oferece respostas, apenas mais perguntas. A cena em que Gon chora, não de alegria, mas de frustração dilacerante, é um dos momentos mais honestos do mangá. Togashi nega a catarse porque sabe que a vida raramente a oferece — e é nessa negação que reside sua crítica mais afiada ao gênero shonen.
Enquanto Dragon Ball idealiza a figura paterna (Goku é literalmente um salvador cósmico), Hunter x Hunter desmistifica o mito do pai. Ging é um anti-Goku: ele não salva o mundo, não ensina lições edificantes, não redime seu passado. Sua grandeza reside justamente em sua pequenez. Ao recusar-se a ser o herói da história de Gon, Ging força o filho (e o leitor) a confrontar a desilusão como rito de passagem — um tema que ecoa Kafka em O Castelo, onde o protagonista K. jamais alcança o objeto de seu desejo, pois a busca é o destino.
A Licença de Caçador, portanto, funciona como um espelho quebrado: cada fragmento reflete uma promessa diferente (poder, conhecimento, pertencimento), mas nenhum deles completa a imagem. Togashi explora isso através de personagens secundários:
Leorio, que busca a licença para financiar tratamentos médicos, só descobre que a riqueza não cura a impotência diante da morte.
Kurapika, que a usa como ferramenta de vingança, percebe que cada membro da Phantom Troupe morto o aproxima mais de si mesmo como monstro.
Hisoka, que a trata como um brinquedo, é o único que parece entender seu vazio inerente — e por isso ri.
Essa licença, no fim, é um símbolo da condição humana em um universo pós-Deus: temos todas as ferramentas para conquistar o mundo, mas nenhum manual para conquistar a nós mesmos. Gon, ao receber sua licença, não celebra — ele a guarda no bolso como um fardo. A cena é uma inversão deliberada do tropo shonen onde o herói ergue troféus; aqui, o troféu pesa mais que ouro.
A genialidade de Togashi está em transformar um dispositivo narrativo banal (a busca por um objeto) em uma metáfora da existência. A Licença de Caçador é o Santo Graal do niilismo moderno: todos o desejam, mas ninguém sabe o que fazer com ele. Gon, em sua pureza corrompida, é o parsifal pós-moderno — um tolo que descobre que o Graal não contém respostas, apenas reflexos distorcidos de suas próprias perguntas.
E assim, a obra nos confronta: o que resta quando a liberdade se revela uma jaula de ar? Quando o pai é apenas um homem, e a licença, apenas papel? Togashi não responde. Ele nos entrega o vazio e sussurra: "Preencha-o como quiser."
Killua (Eletricidade Assassina): Após anos de tortura pela família Zoldyck, Killua desenvolve imunidade a venenos e a habilidade de canalizar eletricidade. Seu Nen é uma cicatriz física de traumas psicológicos, uma energia que paralisa inimigos como ele foi paralisado pelo medo.
Chrollo (Bandit’s Secret): O líder da Phantom Troupe rouba habilidades alheias, mas apenas sob condições complexas. Seu Nen é uma metáfora de sua identidade fragmentada — ele não tem habilidades próprias, apenas as que pilha, como um colecionador de máscaras.
Komugi (Hatsu do Gungi): A princesa do jogo Gungi, uma humana comum, desenvolve um Nen involuntário que a torna invencível. Sua habilidade é pura genialidade inconsciente, uma prova de que o Nen não é domínio de guerreiros, mas de qualquer um com paixão absoluta.
No fim, o Nen nos lembra que o verdadeiro poder não está em destruir montanhas ou manipular elementos, mas em enfrentar o abismo que habita dentro de cada um. Gon, Kurapika, Hisoka — todos são aprendizes dessa lição, mesmo que paguem com pedaços de sua humanidade. E nós, leitores, somos testemunhas silenciosas de um fato perturbador: todos carregamos um Nen dentro de nós. A questão é: o que faríamos com ele?
Togashi constrói o arco como uma tragédia grega moderna, dividida em cinco atos que ecoam a estrutura clássica:
Prólogo (Ascensão da Rainha): A chegada da Formiga Quimera à Terra, um ser alienígena que consome DNA para criar uma espécie superior.
Agon (Nascimento de Meruem): O Rei Quimera emerge como um Übermensch nietzschiano, um ser além do bem e do mal.
Peripécia (Encontro com Komugi): A relação entre Meruem e Komugi desvia o destino predeterminado, inserindo a semente da compaixão.
Catástrofe (Bomba Rosa): A destruição mútua de Netero e Meruem, um ato que expõe a hipocrisia da "humanidade vitoriosa".
Êxodo (Morte de Meruem): A cena final, onde Rei e Komugi morrem jogando Gungi, é um Liebestod (amor-morte) wagneriano, sublimando a tragédia em poesia.
Meruem começa como uma paródia da evolução darwiniana: um ser perfeito fisicamente, mas vazio espiritualmente. Sua crença na supremacia quimera é abalada não por um herói, mas por uma humana frágil e cega. Komugi, com sua genialidade no jogo Gungi, não desafia Meruem com força, mas com vulnerabilidade. Cada partida de Gungi é um duelo existencial:
Meruem joga para dominar;
Komugi joga para existir.
Sua evolução não é biológica, mas espiritual. Quando Meruem pergunta a Komugi: "Por que você continua vivendo?", ela responde: "Porque ainda não ganhei todas as partidas." Essa simplicidade desmonta a grandiosidade do Rei. Ele, que via humanos como gado, descobre que a "inferioridade" humana reside justamente em sua capacidade de amar o efêmero. A cena em que Meruem segura Komugi moribunda, gritando por ajuda, é um dos momentos mais humanos da obra — e ironicamente, ocorre entre não-humanos.
A batalha entre o presidente da Associação Hunter e o Rei Quimera não é um confronto de poderes, mas de ideologias.
Netero representa a humanidade em sua dualidade:
Sua arte marcial (100-Type Guanyin Bodhisattva) é uma oração em movimento, uma fusão de espiritualidade e violência.
Sua decisão de usar a Bomba Rosa revela a hipocrisia de quem defende a vida através da destruição em massa.
Meruem, por outro lado, é a racionalidade desprovida de ética que, paradoxalmente, encontra a ética através do amor.
Quando Netero diz a Meruem "Você não compreende a verdadeira maldade humana" antes de detonar a bomba, ele não está se gabando — está confessando. A Bomba Rosa, uma arma de destruição em massa disfarçada de coração, é o símbolo máximo dessa maldade: a capacidade de justificar atrocidades em nome da "sobrevivência".
Komugi, a jogadora cega de Gungi, é a personificação do absurdo camusiano. Ela não questiona seu destino, nem busca significado grandioso. Seu propósito é jogar — e nesse ato aparentemente banal, ela salva a alma de um deus caído. Sua relação com Meruem é uma inversão da dialética senhor-escravo de Hegel:
Meruem é o senhor que descobre que precisa do "escravo" para existir;
Komugi é a escrava que, sem querer, domina o senhor através da fragilidade.
Sua morte compartilhada não é romântica, mas trágica. Eles não morrem por um ideal, mas por um jogo — e é nesse gesto que Togashi encontra o cerne da humanidade: o significado não está na grandeza, mas no ato de escolher a quem amar, mesmo sabendo que tudo terminará.
Pitou: A guardiã real que desenvolve empatia ao cuidar de Komugi, traindo sua natureza quimera. Sua morte por Gon é uma ironia — ela, que aprendeu a proteger, é esmagada por um humano que desaprendeu a ser humano.
Youpi: O guerreiro que descobre a compaixão ao poupar um inimigo, questionando sua identidade quimera.
Pouf: O mais humano dos guardas em forma, mas o mais monstruoso em essência. Sua obsessão em "proteger" Meruem da humanidade o torna um fanático, espelhando fundamentalismos religiosos e ideológicos.
A Bomba Rosa não é apenas uma arma — é um símbolo da autofagia civilizatória. Netero, o "herói", recorre a ela não por falta de opções, mas por falta de imaginação moral. A radiação que mata Meruem lentamente é um eco de Hiroshima e Nagasaki, uma lembrança de que a humanidade elegeu a destruição como seu deus.
Togashi não permite que os humanos celebrem a vitória. Em vez disso, mostra crianças quimeras (como Colt e Reina) chorando seus amos, enquanto os sobreviventes humanos (como Morel e Knov) carregam cicatrizes invisíveis. A "vitória" é uma piada de mau gosto — as formigas morrem, mas a humanidade revela que já estava morta há muito tempo.
Riscos Narrativos: Togashi destrói seu protagonista (Gon) e humaniza seu antagonista (Meruem), subvertendo expectativas.
Profundidade Psicológica: Cada personagem, até mesmo os secundários, é uma estudo de caso existencial.
Fusão de Gêneros: O arco mistura horror body-horror, drama político, poesia lírica e filosofia em uma única narrativa.
Coragem Temática: Togashi questiona a própria noção de "humanidade" em um meio (shonen) que costuma glorificá-la.
O arco das Formigas Quimera não oferece respostas — ele as incinera. Meruem morre não como um vilão, mas como um martir involuntário. Komugi morre não como uma heroína, mas como uma artista fiel até o fim. Netero morre não como um mártir, mas como um carrasco arrependido.
Togashi nos deixa com uma pergunta que ecoa além das páginas: O que vale mais — a humanidade que destrói, ou a monstruosidade que ama? Em um mundo onde crianças são transformadas em armas (Gon) e monstros choram por humanos (Meruem), a resposta talvez seja: Nenhuma das duas. E ambas.
Este arco é um monumento não apenas ao mangá, mas à arte de contar histórias. Ele nos lembra que, mesmo na escuridão mais profunda, um jogo de tabuleiro e duas mãos entrelaçadas podem ser a única luz que importa.
Nos tópicos abaixo discorrerei sobre assuntos também importantes antes de chegar a conclusão mas de forma rápida.
Enquanto Gon representa a busca externa por significado, Killua personifica a luta interna contra o determinismo. Criado pela família Zoldyck (uma dinastia de assassinos), ele é programado para matar — literalmente, com uma agulha em seu cérebro que suprime emoções.
Sua jornada é uma alegoria da psicanálise:
A agulha removida (física) simboliza a ruptura com o superego repressor.
Sua amizade com Gon é o amor como cura (contrariando a visão freudiana de que o amor é sublimação).
Seu pacto com Alluka (Nen de cura) representa a aceitação da responsabilidade ética, mesmo em um mundo sem regras.
Togashi evita a redenção fácil. Killua não se torna um "herói", mas alguém que escolhe cuidar — uma resposta ao existencialismo de Simone de Beauvoir: "Ninguém nasce humano; torna-se humano."
Hunter x Hunter é também uma crítica mordaz às estruturas de poder, tanto narrativas quanto sociais:
Torre Celestial (Arco do Exame Hunter): Uma competição onde candidatos morrem por um título inútil — uma sátira à meritocracia tóxica.
Greed Island (Arco do Jogo): Um RPG real onde jogadores são consumidos por sua própria ganância, ecoando a alienação do capitalismo tardio (Marx) e o vício em jogos (Byung-Chul Han).
Eleição do 12º Presidente: Uma sátira política onde Pariston Hill, o mestre da manipulação, expõe a farsa da democracia — votos são trocados como moeda, e a verdade é irrelevante.
Em Bleach, os Zanpakutos são armas que evoluem conforme o roteiro exige, sem lógica interna. Em Fairy Tail, a "força da amizade" é um deus ex machina que ignora até as próprias regras mágicas estabelecidas. Togashi, porém, trata o Nen como um sistema orgânico, onde as regras não limitam a criatividade — aumentam-na.
Hard Magic System: O Nen tem categorias (Reforço, Emissão, etc.), condições e riscos claros. Isso cria tensão genuína: quando Kurapika luta contra Uvogin, sabemos que sua vitória depende de estratégia, não de power-ups convenientes.
Poderes como Extensões Psicológicas: Cada habilidade é um ato de autorrevelação. Comparado aos Quirks de My Hero Academia (poderes herdados aleatoriamente), o Nen é uma biografia em aura. Hisoka não escolheu ser elástico e pegajoso — sua alma o fez assim.
Enquanto Bleach tropeça em poderes inconsistentes (como a transformação final de Ichigo, que ignora todas as regras anteriores), Togashi mantém o Nen coeso até nas situações mais extremas. Gon envelhecer para derrotar Pitou não é uma quebra de regras, mas uma consequência trágica das próprias regras: ele sacrifica seu futuro para ganhar poder agora, seguindo à risca a lógica do Contrato de Restrição e Voto.
Em Fairy Tail, dezenas de personagens são introduzidos apenas para ocupar espaço em cenas de batalha coletiva — são corpos sem alma. Em Hunter x Hunter, até um inseto humanóide ganha profundidade trágica.
Antagonistas como Protagonistas de Suas Próprias Tragédias:
Pitou: A guardiã real das Formigas Quimera começa como uma assassina implacável, mas desenvolve empatia ao cuidar de Komugi. Sua morte nas mãos de Gon não é triunfante — é um ato de violência desesperada que nos faz questionar quem é o verdadeiro monstro.
Chrollo Lucilfer: Líder da Phantom Troupe, é um ladrão de almas que coleciona habilidades como quem coleciona versões de si mesmo. Sua busca por significado (explorada no arco de Yorknew) o torna mais humano que muitos "heróis" do gênero.
Personagens Secundários com Arcos Complexos:
Leorio poderia ser o "alívio cômico", mas sua busca para se tornar médico revela uma dor íntima: a impotência diante da morte de um amigo.
Komugi, uma personagem terciária, torna-se o eixo moral do arco mais sombrio da obra.
Compare-se a My Hero Academia, onde personagens como Mineta (o pervertido) ou Koda (o tímido) são reduzidos a traços unidimensionais. Togashi recusa caricaturas — até Tonpa, o "caçador de novatos", tem uma psicologia sádica que o torna memorável.
Enquanto My Hero Academia repete o mantra "heróis vs. vilões" com didatismo infantil, Hunter x Hunter mergulha no cinzento ético.
Phantom Troupe: Assassinos com Código de
Honra:
Matam civis sem remorso, mas choram a morte de
seus membros. Sua dinâmica é a de uma família
disfuncional, não de uma gangue. Quando Hisoka os trai, a
vingança não é por justiça, mas por lealdade — um valor que os
"heróis" da obra muitas vezes faltam.
Gon: O Herói como Antivillain:
Sua
transformação em monstro no arco das Formigas Quimera é uma das
cenas mais corajosas da história dos quadrinhos. Enquanto Deku (My
Hero Academia) aprende a controlar seus poderes sem perder a
pureza, Gon destrói sua própria humanidade para
alcançar seu objetivo. Togashi não redime seu protagonista — ele
o expõe como um espelho nosso, capaz de crueldade infinita sob a
máscara da inocência.
Até mesmo Meruem, o Rei Quimera, desafia categorias. Ele não é um "vilão que se redime", mas um estrangeiro existencial que descobre a ética através do amor. Sua morte não é uma derrota — é uma transcendência.
Togashi não teme desmantelar suas próprias construções. Exemplos:
Greed Island: Um arco que começa como paródia de RPGs vira um estudo sobre vício e escapismo.
Arco da Eleição: Uma trama política complexa que interrompe o clímax da saga das Formigas, forçando o leitor a respirar na tensão.
Hiatus x Hiatus: As pausas prolongadas da publicação, muitas vezes vistas como defeito, são parte da mitologia da obra — um jogo irônico com a noção de "continuidade".
Compare-se a One Piece, onde Oda mantém uma fórmula segura há 25 anos (ilha em crise → luta → vitória → festa). Togashi prefere incendiar o próprio templo para construir algo novo nas cinzas.
Enquanto Naruto transforma seus personagens em deuses (Juubito, Kaguya), Hunter x Hunter celebra a fragilidade como virtude.
Killua: O assassino perfeito é, no fundo, uma criança assustada. Sua força não está em matar, mas em aprender a não matar.
Netero: O homem mais forte do mundo derrota Meruem não com força, mas com uma bomba — um ato de impotência criativa.
Alluka: Uma entidade divina presa em um corpo frágil, cujo poder só pode ser acessado através de pedidos que exigem empatia, não força.
Essa celebração do humano (mesmo em corpos não-humanos) é o antídoto de Togashi para o power creep que infecta shonens como Dragon Ball Super, onde o conflito se resolve com gritos mais altos e cabelos mais brilhantes.
Yoshihiro Togashi não é um autor de shonen — é um cartógrafo da alma humana usando o mangá como meio. Enquanto outros se contentam em seguir mapas, ele desenha novos continentes de significado.
Sua obra não é sobre vencer inimigos, mas sobre perder-se e reencontrar-se nas fronteiras entre humano e monstro, ética e desejo, amor e destruição. Em um gênero dominado por respostas fáceis, Hunter x Hunter faz as perguntas que doem — e é nessa dor que reside sua grandeza.
Enquanto o shonen continuar existindo, Togashi será seu espectro incômodo, lembrando a todos que uma história pode entreter e transformar, desde que haja coragem para olhar no espelho que ela segura.
Togashi ecoa Albert Camus não apenas
nas palavras, mas na estrutura mesma de sua obra. Em O Mito
de Sísifo, Camus escreve:
"A própria luta em
direção ao cume é suficiente para preencher o coração de um
homem. É preciso imaginar Sísifo feliz."
Gon
escalando a Árvore Mundial para encontrar Ging, Meruem jogando sua
última partida com Komugi, Killua carregando Alluka nas costas —
todos são Sísifos modernos. Eles carregam pedras (ódio,
expectativas, culpa) montanha acima, sabendo que a pedra rolará
novamente. A genialidade de Togashi está em nos fazer ver a
beleza nesse ciclo, na recusa em se render à gravidade do
desespero.
A obra nos lembra que somos ratos em um labirinto, sim, mas também arquitetos de nossos próprios labirintos. O Exame Hunter, Greed Island, a Torre Celestial — todos são labirintos criados por humanos para humanos, espelhando nossa necessidade de dar forma ao caos. A genialidade perversa de Togashi é que, mesmo ao expor esses labirintos como prisões, ele os celebra como obras de arte.
Gon escolhe seu labirinto (a busca por Ging) e se perde nele, mas é no ato de se perder que ele encontra fragmentos de si mesmo.
Killua, ao remover a agulha de controle de sua mente, não escapa do labirinto Zoldyck — ele o redefine, transformando uma prisão hereditária em um campo de possibilidades.
Meruem, o rato que se achava arquiteto, descobre que o único labirinto que importa é o do tabuleiro de Gungi, onde cada movimento é um diálogo entre dois seres imperfeitos.
A pergunta final de Togashi — "O que você fará com sua liberdade?" — não é retórica. É um desafio lançado ao leitor, um espelho segurançado nas páginas do mangá. Enquanto One Piece responde com "sonhe!" e Naruto com "persista!", Hunter x Hunter sussurra: "Escolha, mas saiba que toda escolha é uma mutilação."
Gon escolhe vingança e perde sua humanidade.
Kurapika escolhe justiça e torna-se algoz de si mesmo.
Hisoka escolhe o caos e ri, porque o riso é o último refúgio diante do vazio.
Não há respostas certas, apenas escolhas autênticas — e é nisso que reside a ética clandestina da obra.
Tecnicamente, Togashi reforça essa mensagem através de:
Traços Inacabados: Seu estilo oscila entre esboços minimalistas e detalhes hiper-realistas, como se o mangá fosse um caderno de rascunhos existencial. As páginas borradas de sangue e lágrimas não são falhas, mas lembretes: a vida é um rascunho.
Hiatus como Metáfora: As pausas intermináveis na publicação não são procrastinação, mas um ato performático. Togashi força o leitor a viver o mesmo vazio que seus personagens — a espera sem garantias, a liberdade sem mapa.
Não Linearidade: O arco das Formigas Quimera quebra a cronologia para mostrar que o tempo humano é uma ilusão. A morte de Meruem e o nascimento de Alluka ocorrem em paralelo, como se a vida e a morte fossem faces da mesma moeda.
Enquanto outros shonens envelhecem como manuais de autoajuda (otimismo ingênuo, moralidade binária), Hunter x Hunter amadurece como vinho. Sua escuridão não é edgy, mas profundamente humana. Cada releitura revela novas camadas:
Para o adolescente, é uma aventura sobre amigos e poderes.
Para o adulto, é um tratado sobre ética em um mundo sem deuses.
Togashi não oferece respostas porque sabe que a única resposta possível é viver a pergunta. Gon, Killua, Meruem — todos são versões de nós mesmos, perdidos em nossos labirintos pessoais, buscando saídas que talvez não existam.
Ao fechar o último episódio, não somos os mesmos. Hunter x Hunter não entrega heróis para idolatrar ou lições para decorar. Ela nos entrega um espelho sujo de lama e sangue, onde enxergamos nosso rosto desfigurado — e, por algum milagre, sorrimos.
Togashi nos convida a fazer o mesmo:
"Sorria.
Você está livre. Agora, o que vai fazer com isso?"
Nesse silêncio após a pergunta, reside toda a beleza — e todo o horror — de ser humano.
Review perfeita.
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