9- Fire Force: A Pirótécnica da Fé e A Vontade de Arder

Imagem
De volta após um breve hiato, cada dia mais à semelhança do meu autor favorito, Yoshihiro Togashi, retorno com mais uma análise filosófica. Desta vez, sobre uma das obras mais intensas, simbólicas e visualmente deslumbrantes que assisti nos últimos tempos: Fire Force . Um anime que, sob o calor das batalhas e o brilho das chamas, esconde reflexões profundas sobre fé, identidade, autoridade e transcendência, espero que vocês gostem do que abordarei nesse texto, e espero ver todos mais vezes por aqui. (Como um Anime de Bombeiros Piromantes Virou um Tratado Sobre a Ontologia do Caos) À primeira vista,  Fire Force  parece um espetáculo pirotécnico sobre heróis em trajes ignífugos combatendo monstros de fogo. Mas sob seus  sakugas  reluzentes pulsa uma das investigações mais incendiárias da filosofia contemporânea:  o combate às chamas como guerra metafísica contra o vazio existencial . Enquanto Descartes via no fogo um mero  "objeto extenso" , aqui as labaredas...

1- Hunter x Hunter: A Desconstrução do Shonen como Espelho da Condição Humana

(Uma análise sobre como Yoshihiro Togashi transcende gêneros para explorar a ética, o poder e a busca por significado em um mundo pós-metafísico)

Introdução: O Shonen que Ousa Questionar

Hunter x Hunter (1998-presente) não é apenas um mangá shonen — é um experimento narrativo que usa o gênero como laboratório para dissecar as contradições da condição humana. Yoshihiro Togashi, seu criador, opera com a frieza de um cirurgião: ele não corta apenas tecidos, mas ideias. Enquanto a maioria dos shonens se contenta em seguir fórmulas (o herói infalível, a vitória garantida pelo esforço, o vilão como obstáculo unidimensional), Togashi questiona os alicerces do próprio gênero.

A obra se passa em um mundo onde caçadores — indivíduos com licenças que os tornam acima da lei — perseguem objetivos tão variados quanto caçar tesouros, espécies raras ou mesmo outros humanos. Essa premissa, aparentemente simples, esconde uma pergunta incômoda: O que move alguém em um mundo sem sentido maior? Gon Freecss, o protagonista, inicia sua jornada para encontrar o pai ausente, Ging, mas essa busca logo se revela uma armadilha narrativa. Ging não é um objetivo, mas um símbolo do vazio: quanto mais Gon se aproxima dele, mais descobre que a resposta não está no destino, mas nas fissuras da própria jornada.

A Subversão das Convenções do Shonen

Togashi não apenas quebra expectativas — ele as desmonta e remonta em formas perturbadoras. Por exemplo:

  • O Esforço Não Garante Nada: Em Naruto, o treinamento árduo leva à vitória; em Hunter x Hunter, Gon sacrifica anos de sua vida para confrontar Pitou (Formiga Quimera), mas sua vitória é pyrrhic: ele destrói seu corpo e moralidade, tornando-se um monstro.

  • A Amizade como Faca de Dois Gumes: Killua e Gon não são "melhores amigos" no sentido açucarado de One Piece. Sua relação é tóxica e codependente — Killua se anula para salvar Gon, enquanto Gon o manipula inconscientemente.

  • A Morte como Consequência, Não como Drama: Personagens morrem de forma abrupta e antiheroica (como Kite, decapitado por Pitou no início do arco das Formigas). Não há discursos de despedida, apenas o silêncio cortante da irreversibilidade.

O Shonen como Espelho da Pós-Modernidade

Hunter x Hunter reflete a crise existencial do homem contemporâneo, que, desencantado com metanarrativas (religião, ideologias, progresso), se vê obrigado a inventar significado em um universo que não oferece respostas. Gon é o homem moderno em miniatura:

  • Sua busca por Ging ecoa a busca por um Deus morto (Nietzsche), um pai que promete sentido, mas só oferece ausência.

  • Sua transformação em monstro no arco das Formigas Quimera é uma alegoria do niilismo ativo: a destruição como única forma de preencher o vazio.

Enquanto One Piece celebra a liberdade como utopia coletiva ("o tesouro está nos amigos que fizemos"), Hunter x Hunter pergunta: "Liberdade para quê?". A Licença de Caçador, símbolo máximo dessa liberdade, é um passe para o abismo: ela permite tudo, exceto escapar de si mesmo.

A Estética da Desilusão

Togashi usa o traço aparentemente simples do mangá para criar contrastes brutais. Suas páginas são minimalistas até explodirem em detalhes grotescos (como o corpo deformado de Gon após usar seu Nen para envelhecer). Essa dualidade visual espelha a estrutura narrativa: o mangá alterna entre episódios leves (como o arco de Greed Island, que parodia RPGs) e mergulhos abissais na escuridão humana (o genocídio das Formigas Quimera).

Até mesmo o humor em Hunter x Hunter é subversivo. Hisoka, o palhaço sádico, ri enquanto comete atrocidades — uma crítica ao absurdo camusiano, onde o riso é a única resposta à falta de sentido.

Por que Togashi é Único?

Enquanto outros autores de shonen tentam inovar com plot twists ou power-ups, Togashi faz algo mais radical: ele humaniza o desumano. Meruem, o Rei Quimera, começa como um predador amoral, mas sua relação com Komugi (uma humana frágil) o transforma em uma figura trágica, mais "humana" que seus algozes. Essa complexidade é rara até em obras literárias — quiçá em um mangá.

Além disso, Togashi rejeita o moralismo binário. Os Phantom Troupe, por exemplo, são assassinos em massa, mas também uma família disfuncional que chora a morte de seus membros. Não há vilões, apenas pessoas que escolheram (ou foram forçadas a) viver na sombra.

Conclusão da Introdução: Uma Obra que Sangra

Hunter x Hunter não é uma história sobre heróis. É uma autópsia da humanidade, onde Togashi expõe vísceras filosóficas com a precisão de quem sabe que a cura só vem após o diagnóstico. Enquanto o shonen tradicional entretém, esta obra inquieta — e é nessa inquietação que reside sua genialidade.

Na próxima seção, mergulharemos na Licença de Caçador como símbolo do vazio pós-moderno, explorando como Togashi transforma um troféu de papel em um espelho da alma humana.

II. A Licença de Caçador: O Vazio por Trás da Liberdade


A Licença de Caçador não é um objeto — é um sintoma. Desde o primeiro arco do Exame Hunter, onde centenas de candidatos arriscam a vida por um pedaço de papel laminado, Togashi expõe a natureza paradoxal do desejo humano. A licença funciona como um MacGuffin metafísico: seu valor não está no que é (um certificado burocrático), mas no que promete (acesso a um mundo além das regras ordinárias). Ela é a materialização do sonho pós-moderno de liberdade absoluta — uma liberdade que, paradoxalmente, se revela um deserto sem pontos de referência.

Gon Freecss, o protagonista ingênuo de olhos verdes e coração aberto, personifica essa busca. Sua jornada para encontrar Ging, o pai que o abandonou, não é apenas uma trama familiar, mas uma alegoria da crise edipiana elevada ao nível cósmico. Ging não é um mero pai ausente; ele é o arquétipo do Pai Primordial, uma figura que encarna a promessa de completude. Como um Ícaro moderno, Gon voa em direção a esse sol simbólico, ignorando que quanto mais alto sobe, mais suas asas de cera — sua inocência, sua moralidade — derretem.

Quando Gon finalmente encontra Ging, no ápice do arco da Ilha dos Jogos, o anticlímax é calculado com crueldade cirúrgica. Ging não é um deus ou um tirano, mas um homem comum amplificado: egoísta, genial, emocionalmente incapaz. Ele não oferece respostas, apenas mais perguntas. A cena em que Gon chora, não de alegria, mas de frustração dilacerante, é um dos momentos mais honestos do mangá. Togashi nega a catarse porque sabe que a vida raramente a oferece — e é nessa negação que reside sua crítica mais afiada ao gênero shonen.

Enquanto Dragon Ball idealiza a figura paterna (Goku é literalmente um salvador cósmico), Hunter x Hunter desmistifica o mito do pai. Ging é um anti-Goku: ele não salva o mundo, não ensina lições edificantes, não redime seu passado. Sua grandeza reside justamente em sua pequenez. Ao recusar-se a ser o herói da história de Gon, Ging força o filho (e o leitor) a confrontar a desilusão como rito de passagem — um tema que ecoa Kafka em O Castelo, onde o protagonista K. jamais alcança o objeto de seu desejo, pois a busca é o destino.

A Licença de Caçador, portanto, funciona como um espelho quebrado: cada fragmento reflete uma promessa diferente (poder, conhecimento, pertencimento), mas nenhum deles completa a imagem. Togashi explora isso através de personagens secundários:

  • Leorio, que busca a licença para financiar tratamentos médicos, só descobre que a riqueza não cura a impotência diante da morte.

  • Kurapika, que a usa como ferramenta de vingança, percebe que cada membro da Phantom Troupe morto o aproxima mais de si mesmo como monstro.

  • Hisoka, que a trata como um brinquedo, é o único que parece entender seu vazio inerente — e por isso ri.

Essa licença, no fim, é um símbolo da condição humana em um universo pós-Deus: temos todas as ferramentas para conquistar o mundo, mas nenhum manual para conquistar a nós mesmos. Gon, ao receber sua licença, não celebra — ele a guarda no bolso como um fardo. A cena é uma inversão deliberada do tropo shonen onde o herói ergue troféus; aqui, o troféu pesa mais que ouro.

A genialidade de Togashi está em transformar um dispositivo narrativo banal (a busca por um objeto) em uma metáfora da existência. A Licença de Caçador é o Santo Graal do niilismo moderno: todos o desejam, mas ninguém sabe o que fazer com ele. Gon, em sua pureza corrompida, é o parsifal pós-moderno — um tolo que descobre que o Graal não contém respostas, apenas reflexos distorcidos de suas próprias perguntas.

E assim, a obra nos confronta: o que resta quando a liberdade se revela uma jaula de ar? Quando o pai é apenas um homem, e a licença, apenas papel? Togashi não responde. Ele nos entrega o vazio e sussurra: "Preencha-o como quiser."

III. Nen: O Sistema de Poder como Metáfora Narrativa


O Nen em Hunter x Hunter não é um mero sistema de magia — é um vocabulário da alma. Enquanto outros shonens tratam poderes como puras ferramentas de combate (como os Quirks de My Hero Academia ou a grande maioria dos Frutos do Diabo de One Piece), Togashi os transforma em extensões da psique. O Nen é a energia vital moldada pela vontade, mas também pela neurose, pelo trauma e pelo desejo inconsciente. Suas regras — categorias, condições, riscos — não existem para limitar, mas para revelar. Cada habilidade é uma janela para o abismo interior de quem a usa, uma confissão involuntária.

Kurapika e as Correntes do Ódio

As Correntes do Juramento de Kurapika são mais que armas: são grilhões metafísicos. Para criá-las, ele fez um pacto que restringe seu uso apenas aos membros da Phantom Troupe, sob pena de morte. Tecnicamente, é uma habilidade de Especialista, mas psicologicamente, é uma prisão autoimposta. Cada corrente é um elo de ódio purificado, um veneno que ele injeta nos inimigos e em si mesmo. Ao limitar seu próprio poder, Kurapika não demonstra fraqueza — ele encena seu desejo de controle em um mundo caótico. Sua vingança não é um ato de justiça, mas um ritual de autodestruição, uma repetição compulsiva do trauma (Freud chamaria isso de compulsão à repetição). Quando ele mata Uvogin, não há triunfo, apenas o vazio de quem percebe que o ódio, uma vez consumado, deixa apenas cinzas.

Gon e a Infantilização da Violência

O Jajanken de Gon — Pedra, Papel, Tesoura — é uma das habilidades mais perturbadoramente geniais do mangá. Ao transformar um jogo infantil em arma letal, Togashi expõe a ambiguidade da inocência. Gon recusa-se a crescer, a aceitar as regras adultas de moralidade condicional. Seu Nen, porém, trai essa recusa: quanto mais ele se apega à simplicidade do jogo, mais seu corpo e mente se deformam. No arco das Formigas Quimera, quando Gon sacrifica seu futuro para envelhecer temporariamente e enfrentar Pitou, sua transformação não é um power-up, mas um colapso ontológico. Seu corpo musculoso e envelhecido é uma caricatura grotesca da maturidade, um aviso de que a recusa em negociar com a complexidade do mundo só gera monstros. Aqui, Togashi ecoa Jung: a sombra não integrada corrompe o self.

Hisoka: O Prazer como Última Fronteira

Hisoka, com seu Bungee Gum (uma substância elástica e pegajosa), é o princípio do prazer personificado. Sua habilidade não tem ética, apenas possibilidade — ele a usa para se lançar em ataques imprevisíveis, para manipular corpos como marionetes, para brincar com a morte como um gato com um rato. Freud diria que Hisoka é o Id desencarnado: impulsivo, amoral, voraz. Seu prazer não está na vitória, mas na tensão do quase. Quando ele luta contra Gon no Exame Hunter, não quer matá-lo — quer cultivá-lo, como um fruto que amadurecerá para ser colhido no ápice do desespero. Sua risada, recorrente e histérica, é a trilha sonora do absurdo: um homem que sabe que o sentido da vida é um jogo, e decide jogar mesmo assim.

Outras Manifestações do Inconsciente

  • Killua (Eletricidade Assassina): Após anos de tortura pela família Zoldyck, Killua desenvolve imunidade a venenos e a habilidade de canalizar eletricidade. Seu Nen é uma cicatriz física de traumas psicológicos, uma energia que paralisa inimigos como ele foi paralisado pelo medo.

  • Chrollo (Bandit’s Secret): O líder da Phantom Troupe rouba habilidades alheias, mas apenas sob condições complexas. Seu Nen é uma metáfora de sua identidade fragmentada — ele não tem habilidades próprias, apenas as que pilha, como um colecionador de máscaras.

  • Komugi (Hatsu do Gungi): A princesa do jogo Gungi, uma humana comum, desenvolve um Nen involuntário que a torna invencível. Sua habilidade é pura genialidade inconsciente, uma prova de que o Nen não é domínio de guerreiros, mas de qualquer um com paixão absoluta.

A Crueza da Materialização

Quando Gon se deforma contra Pitou, Togashi não poupa detalhes: músculos rompidos, ossos expostos, um rosto que é um misto de criança e ancião. Essa violência gráfica não é gratuita — é a materialização da alma em decomposição. Enquanto outros mangás usam transformações como superações (Goku SSJ, Naruto Bijuu Mode), Gon paga um preço literalmente corporal por seu poder. Sua forma monstruosa é um aviso: o Nen não é um presente, mas um espelho. Quem o usa sem autoconhecimento não derrota inimigos — derrota a si mesmo.

Conclusão: O Nen como Linguagem do Inconsciente

Togashi poderia ter criado um sistema de poderes estático, mas escolheu um que evolui com a psique dos personagens. O Nen é a linguagem secreta de Hunter x Hunter — um código que traduz conflitos internos em batalhas externas. Cada aura, cada técnica, cada condição é um hieróglifo esculpido nas paredes do inconsciente. E como todo idioma verdadeiro, ele não comunica — confessa.

No fim, o Nen nos lembra que o verdadeiro poder não está em destruir montanhas ou manipular elementos, mas em enfrentar o abismo que habita dentro de cada um. Gon, Kurapika, Hisoka — todos são aprendizes dessa lição, mesmo que paguem com pedaços de sua humanidade. E nós, leitores, somos testemunhas silenciosas de um fato perturbador: todos carregamos um Nen dentro de nós. A questão é: o que faríamos com ele?

IV. O Arco das Formigas Quimera: A Humanidade como Tragédia Grega


O arco das Formigas Quimera não é apenas um ponto alto de Hunter x Hunter — é um monumento literário que transcende o medium do mangá. Yoshihiro Togashi, aqui, não está apenas contando uma história; ele está conduzindo uma ópera filosófica onde sangue, ética e poesia se misturam em uma coreografia de horror e beleza. Este arco é uma resposta à pergunta: O que nos faz humanos? E a resposta, como um espelho quebrado, reflete infinitas contradições.

A Estrutura de uma Tragédia em Cinco Atos

Togashi constrói o arco como uma tragédia grega moderna, dividida em cinco atos que ecoam a estrutura clássica:

  1. Prólogo (Ascensão da Rainha): A chegada da Formiga Quimera à Terra, um ser alienígena que consome DNA para criar uma espécie superior.

  2. Agon (Nascimento de Meruem): O Rei Quimera emerge como um Übermensch nietzschiano, um ser além do bem e do mal.

  3. Peripécia (Encontro com Komugi): A relação entre Meruem e Komugi desvia o destino predeterminado, inserindo a semente da compaixão.

  4. Catástrofe (Bomba Rosa): A destruição mútua de Netero e Meruem, um ato que expõe a hipocrisia da "humanidade vitoriosa".

  5. Êxodo (Morte de Meruem): A cena final, onde Rei e Komugi morrem jogando Gungi, é um Liebestod (amor-morte) wagneriano, sublimando a tragédia em poesia.

Meruem: O Anti-Herói como Espelho da Humanidade

Meruem começa como uma paródia da evolução darwiniana: um ser perfeito fisicamente, mas vazio espiritualmente. Sua crença na supremacia quimera é abalada não por um herói, mas por uma humana frágil e cega. Komugi, com sua genialidade no jogo Gungi, não desafia Meruem com força, mas com vulnerabilidade. Cada partida de Gungi é um duelo existencial:

  • Meruem joga para dominar;

  • Komugi joga para existir.

Sua evolução não é biológica, mas espiritual. Quando Meruem pergunta a Komugi: "Por que você continua vivendo?", ela responde: "Porque ainda não ganhei todas as partidas." Essa simplicidade desmonta a grandiosidade do Rei. Ele, que via humanos como gado, descobre que a "inferioridade" humana reside justamente em sua capacidade de amar o efêmero. A cena em que Meruem segura Komugi moribunda, gritando por ajuda, é um dos momentos mais humanos da obra — e ironicamente, ocorre entre não-humanos.

Netero vs. Meruem: O Duelo como Autópsia da Civilização

A batalha entre o presidente da Associação Hunter e o Rei Quimera não é um confronto de poderes, mas de ideologias.

  • Netero representa a humanidade em sua dualidade:

    • Sua arte marcial (100-Type Guanyin Bodhisattva) é uma oração em movimento, uma fusão de espiritualidade e violência.

    • Sua decisão de usar a Bomba Rosa revela a hipocrisia de quem defende a vida através da destruição em massa.

  • Meruem, por outro lado, é a racionalidade desprovida de ética que, paradoxalmente, encontra a ética através do amor.

Quando Netero diz a Meruem "Você não compreende a verdadeira maldade humana" antes de detonar a bomba, ele não está se gabando — está confessando. A Bomba Rosa, uma arma de destruição em massa disfarçada de coração, é o símbolo máximo dessa maldade: a capacidade de justificar atrocidades em nome da "sobrevivência".

Komugi: A Santa do Absurdo

Komugi, a jogadora cega de Gungi, é a personificação do absurdo camusiano. Ela não questiona seu destino, nem busca significado grandioso. Seu propósito é jogar — e nesse ato aparentemente banal, ela salva a alma de um deus caído. Sua relação com Meruem é uma inversão da dialética senhor-escravo de Hegel:

  • Meruem é o senhor que descobre que precisa do "escravo" para existir;

  • Komugi é a escrava que, sem querer, domina o senhor através da fragilidade.

Sua morte compartilhada não é romântica, mas trágica. Eles não morrem por um ideal, mas por um jogo — e é nesse gesto que Togashi encontra o cerne da humanidade: o significado não está na grandeza, mas no ato de escolher a quem amar, mesmo sabendo que tudo terminará.

Os Soldados Quimera: Espelhos Distorcidos da Condição Humana

  • Pitou: A guardiã real que desenvolve empatia ao cuidar de Komugi, traindo sua natureza quimera. Sua morte por Gon é uma ironia — ela, que aprendeu a proteger, é esmagada por um humano que desaprendeu a ser humano.

  • Youpi: O guerreiro que descobre a compaixão ao poupar um inimigo, questionando sua identidade quimera.

  • Pouf: O mais humano dos guardas em forma, mas o mais monstruoso em essência. Sua obsessão em "proteger" Meruem da humanidade o torna um fanático, espelhando fundamentalismos religiosos e ideológicos.

A Bomba Rosa: A Ilusão da Vitória

A Bomba Rosa não é apenas uma arma — é um símbolo da autofagia civilizatória. Netero, o "herói", recorre a ela não por falta de opções, mas por falta de imaginação moral. A radiação que mata Meruem lentamente é um eco de Hiroshima e Nagasaki, uma lembrança de que a humanidade elegeu a destruição como seu deus.

Togashi não permite que os humanos celebrem a vitória. Em vez disso, mostra crianças quimeras (como Colt e Reina) chorando seus amos, enquanto os sobreviventes humanos (como Morel e Knov) carregam cicatrizes invisíveis. A "vitória" é uma piada de mau gosto — as formigas morrem, mas a humanidade revela que já estava morta há muito tempo.

Por que Este Arco é uma Obra-Prima?

  • Riscos Narrativos: Togashi destrói seu protagonista (Gon) e humaniza seu antagonista (Meruem), subvertendo expectativas.

  • Profundidade Psicológica: Cada personagem, até mesmo os secundários, é uma estudo de caso existencial.

  • Fusão de Gêneros: O arco mistura horror body-horror, drama político, poesia lírica e filosofia em uma única narrativa.

  • Coragem Temática: Togashi questiona a própria noção de "humanidade" em um meio (shonen) que costuma glorificá-la.

Conclusão: O Legado de uma Tragédia sem Culpados

O arco das Formigas Quimera não oferece respostas — ele as incinera. Meruem morre não como um vilão, mas como um martir involuntário. Komugi morre não como uma heroína, mas como uma artista fiel até o fim. Netero morre não como um mártir, mas como um carrasco arrependido.

Togashi nos deixa com uma pergunta que ecoa além das páginas: O que vale mais — a humanidade que destrói, ou a monstruosidade que ama? Em um mundo onde crianças são transformadas em armas (Gon) e monstros choram por humanos (Meruem), a resposta talvez seja: Nenhuma das duas. E ambas.

Este arco é um monumento não apenas ao mangá, mas à arte de contar histórias. Ele nos lembra que, mesmo na escuridão mais profunda, um jogo de tabuleiro e duas mãos entrelaçadas podem ser a única luz que importa.

Nos tópicos abaixo discorrerei sobre assuntos também importantes antes de chegar a conclusão mas de forma rápida.

V. Killua Zoldyck: A Libertação como Ato de Revolução Pessoal

Enquanto Gon representa a busca externa por significado, Killua personifica a luta interna contra o determinismo. Criado pela família Zoldyck (uma dinastia de assassinos), ele é programado para matar — literalmente, com uma agulha em seu cérebro que suprime emoções.

Sua jornada é uma alegoria da psicanálise:

  1. A agulha removida (física) simboliza a ruptura com o superego repressor.

  2. Sua amizade com Gon é o amor como cura (contrariando a visão freudiana de que o amor é sublimação).

  3. Seu pacto com Alluka (Nen de cura) representa a aceitação da responsabilidade ética, mesmo em um mundo sem regras.

Togashi evita a redenção fácil. Killua não se torna um "herói", mas alguém que escolhe cuidar — uma resposta ao existencialismo de Simone de Beauvoir: "Ninguém nasce humano; torna-se humano."

VI. A Crítica ao Shonen e ao Capitalismo Tardio

Hunter x Hunter é também uma crítica mordaz às estruturas de poder, tanto narrativas quanto sociais:

  • Torre Celestial (Arco do Exame Hunter): Uma competição onde candidatos morrem por um título inútil — uma sátira à meritocracia tóxica.

  • Greed Island (Arco do Jogo): Um RPG real onde jogadores são consumidos por sua própria ganância, ecoando a alienação do capitalismo tardio (Marx) e o vício em jogos (Byung-Chul Han).

  • Eleição do 12º Presidente: Uma sátira política onde Pariston Hill, o mestre da manipulação, expõe a farsa da democracia — votos são trocados como moeda, e a verdade é irrelevante.

VII. Onde Togashi Supera Seus Pares: A Desconstrução como Revolução Narrativa

Yoshihiro Togashi não está competindo com outros autores de shonen — está jogando um jogo diferente. Enquanto a indústria se contenta em reciclar fórmulas seguras, ele usa o mangá como um bisturi para dissecar as entranhas do gênero. O resultado é uma obra que não apenas evita as armadilhas do shonen, mas as expõe como sintomas de uma cultura narrativa estagnada. Vamos às raízes dessa genialidade subversiva:

1. Sistemas de Poder: Nen vs. O Vazio das Regras Arbitrárias

Em Bleach, os Zanpakutos são armas que evoluem conforme o roteiro exige, sem lógica interna. Em Fairy Tail, a "força da amizade" é um deus ex machina que ignora até as próprias regras mágicas estabelecidas. Togashi, porém, trata o Nen como um sistema orgânico, onde as regras não limitam a criatividade — aumentam-na.

  • Hard Magic System: O Nen tem categorias (Reforço, Emissão, etc.), condições e riscos claros. Isso cria tensão genuína: quando Kurapika luta contra Uvogin, sabemos que sua vitória depende de estratégia, não de power-ups convenientes.

  • Poderes como Extensões Psicológicas: Cada habilidade é um ato de autorrevelação. Comparado aos Quirks de My Hero Academia (poderes herdados aleatoriamente), o Nen é uma biografia em aura. Hisoka não escolheu ser elástico e pegajoso — sua alma o fez assim.

Enquanto Bleach tropeça em poderes inconsistentes (como a transformação final de Ichigo, que ignora todas as regras anteriores), Togashi mantém o Nen coeso até nas situações mais extremas. Gon envelhecer para derrotar Pitou não é uma quebra de regras, mas uma consequência trágica das próprias regras: ele sacrifica seu futuro para ganhar poder agora, seguindo à risca a lógica do Contrato de Restrição e Voto.

2. Personagens: Ninguém é Descartável, Nem os Monstros

Em Fairy Tail, dezenas de personagens são introduzidos apenas para ocupar espaço em cenas de batalha coletiva — são corpos sem alma. Em Hunter x Hunter, até um inseto humanóide ganha profundidade trágica.

  • Antagonistas como Protagonistas de Suas Próprias Tragédias:

    • Pitou: A guardiã real das Formigas Quimera começa como uma assassina implacável, mas desenvolve empatia ao cuidar de Komugi. Sua morte nas mãos de Gon não é triunfante — é um ato de violência desesperada que nos faz questionar quem é o verdadeiro monstro.

    • Chrollo Lucilfer: Líder da Phantom Troupe, é um ladrão de almas que coleciona habilidades como quem coleciona versões de si mesmo. Sua busca por significado (explorada no arco de Yorknew) o torna mais humano que muitos "heróis" do gênero.

  • Personagens Secundários com Arcos Complexos:

    • Leorio poderia ser o "alívio cômico", mas sua busca para se tornar médico revela uma dor íntima: a impotência diante da morte de um amigo.

    • Komugi, uma personagem terciária, torna-se o eixo moral do arco mais sombrio da obra.

Compare-se a My Hero Academia, onde personagens como Mineta (o pervertido) ou Koda (o tímido) são reduzidos a traços unidimensionais. Togashi recusa caricaturas — até Tonpa, o "caçador de novatos", tem uma psicologia sádica que o torna memorável.

3. Moralidade: Além do Bem e do Mal

Enquanto My Hero Academia repete o mantra "heróis vs. vilões" com didatismo infantil, Hunter x Hunter mergulha no cinzento ético.

  • Phantom Troupe: Assassinos com Código de Honra:
    Matam civis sem remorso, mas choram a morte de seus membros. Sua dinâmica é a de uma família disfuncional, não de uma gangue. Quando Hisoka os trai, a vingança não é por justiça, mas por lealdade — um valor que os "heróis" da obra muitas vezes faltam.

  • Gon: O Herói como Antivillain:
    Sua transformação em monstro no arco das Formigas Quimera é uma das cenas mais corajosas da história dos quadrinhos. Enquanto Deku (My Hero Academia) aprende a controlar seus poderes sem perder a pureza, Gon destrói sua própria humanidade para alcançar seu objetivo. Togashi não redime seu protagonista — ele o expõe como um espelho nosso, capaz de crueldade infinita sob a máscara da inocência.

Até mesmo Meruem, o Rei Quimera, desafia categorias. Ele não é um "vilão que se redime", mas um estrangeiro existencial que descobre a ética através do amor. Sua morte não é uma derrota — é uma transcendência.

4. Riscos Narrativos: Onde Outros Temem Pisar

Togashi não teme desmantelar suas próprias construções. Exemplos:

  • Greed Island: Um arco que começa como paródia de RPGs vira um estudo sobre vício e escapismo.

  • Arco da Eleição: Uma trama política complexa que interrompe o clímax da saga das Formigas, forçando o leitor a respirar na tensão.

  • Hiatus x Hiatus: As pausas prolongadas da publicação, muitas vezes vistas como defeito, são parte da mitologia da obra — um jogo irônico com a noção de "continuidade".

Compare-se a One Piece, onde Oda mantém uma fórmula segura há 25 anos (ilha em crise → luta → vitória → festa). Togashi prefere incendiar o próprio templo para construir algo novo nas cinzas.

5. A Coragem da Fragilidade

Enquanto Naruto transforma seus personagens em deuses (Juubito, Kaguya), Hunter x Hunter celebra a fragilidade como virtude.

  • Killua: O assassino perfeito é, no fundo, uma criança assustada. Sua força não está em matar, mas em aprender a não matar.

  • Netero: O homem mais forte do mundo derrota Meruem não com força, mas com uma bomba — um ato de impotência criativa.

  • Alluka: Uma entidade divina presa em um corpo frágil, cujo poder só pode ser acessado através de pedidos que exigem empatia, não força.

Essa celebração do humano (mesmo em corpos não-humanos) é o antídoto de Togashi para o power creep que infecta shonens como Dragon Ball Super, onde o conflito se resolve com gritos mais altos e cabelos mais brilhantes.

Por que Togashi é Inigualável

Yoshihiro Togashi não é um autor de shonen — é um cartógrafo da alma humana usando o mangá como meio. Enquanto outros se contentam em seguir mapas, ele desenha novos continentes de significado.

Sua obra não é sobre vencer inimigos, mas sobre perder-se e reencontrar-se nas fronteiras entre humano e monstro, ética e desejo, amor e destruição. Em um gênero dominado por respostas fáceis, Hunter x Hunter faz as perguntas que doem — e é nessa dor que reside sua grandeza.

Enquanto o shonen continuar existindo, Togashi será seu espectro incômodo, lembrando a todos que uma história pode entreter e transformar, desde que haja coragem para olhar no espelho que ela segura.

Conclusão: A Arte como Resistência ao Absurdo

Hunter x Hunter não é uma história sobre triunfos — é um monumento às derrotas que nos tornam humanos. Gon perde seu Nen, mas recupera a chance de recomeçar. Killua abandona a família Zoldyck, mas encontra sua identidade na renúncia. Meruem morre jogando Gungi, mas transcende sua natureza predatória ao escolher amor sobre dominação. Essas "derrotas" não são fracassos; são atos de rebeldia contra um universo absurdo, gestos que transformam a queda em dança.

Togashi ecoa Albert Camus não apenas nas palavras, mas na estrutura mesma de sua obra. Em O Mito de Sísifo, Camus escreve:
"A própria luta em direção ao cume é suficiente para preencher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz."
Gon escalando a Árvore Mundial para encontrar Ging, Meruem jogando sua última partida com Komugi, Killua carregando Alluka nas costas — todos são Sísifos modernos. Eles carregam pedras (ódio, expectativas, culpa) montanha acima, sabendo que a pedra rolará novamente. A genialidade de Togashi está em nos fazer ver a beleza nesse ciclo, na recusa em se render à gravidade do desespero.

O Labirinto como Liberdade

A obra nos lembra que somos ratos em um labirinto, sim, mas também arquitetos de nossos próprios labirintos. O Exame Hunter, Greed Island, a Torre Celestial — todos são labirintos criados por humanos para humanos, espelhando nossa necessidade de dar forma ao caos. A genialidade perversa de Togashi é que, mesmo ao expor esses labirintos como prisões, ele os celebra como obras de arte.

  • Gon escolhe seu labirinto (a busca por Ging) e se perde nele, mas é no ato de se perder que ele encontra fragmentos de si mesmo.

  • Killua, ao remover a agulha de controle de sua mente, não escapa do labirinto Zoldyck — ele o redefine, transformando uma prisão hereditária em um campo de possibilidades.

  • Meruem, o rato que se achava arquiteto, descobre que o único labirinto que importa é o do tabuleiro de Gungi, onde cada movimento é um diálogo entre dois seres imperfeitos.

A Liberdade como Fardo e Obra-Prima

A pergunta final de Togashi — "O que você fará com sua liberdade?" — não é retórica. É um desafio lançado ao leitor, um espelho segurançado nas páginas do mangá. Enquanto One Piece responde com "sonhe!" e Naruto com "persista!", Hunter x Hunter sussurra: "Escolha, mas saiba que toda escolha é uma mutilação."

  • Gon escolhe vingança e perde sua humanidade.

  • Kurapika escolhe justiça e torna-se algoz de si mesmo.

  • Hisoka escolhe o caos e ri, porque o riso é o último refúgio diante do vazio.

Não há respostas certas, apenas escolhas autênticas — e é nisso que reside a ética clandestina da obra.

A Estética da Imperfeição

Tecnicamente, Togashi reforça essa mensagem através de:

  1. Traços Inacabados: Seu estilo oscila entre esboços minimalistas e detalhes hiper-realistas, como se o mangá fosse um caderno de rascunhos existencial. As páginas borradas de sangue e lágrimas não são falhas, mas lembretes: a vida é um rascunho.

  2. Hiatus como Metáfora: As pausas intermináveis na publicação não são procrastinação, mas um ato performático. Togashi força o leitor a viver o mesmo vazio que seus personagens — a espera sem garantias, a liberdade sem mapa.

  3. Não Linearidade: O arco das Formigas Quimera quebra a cronologia para mostrar que o tempo humano é uma ilusão. A morte de Meruem e o nascimento de Alluka ocorrem em paralelo, como se a vida e a morte fossem faces da mesma moeda.

O Legado: Por que Hunter x Hunter é Atremporal

Enquanto outros shonens envelhecem como manuais de autoajuda (otimismo ingênuo, moralidade binária), Hunter x Hunter amadurece como vinho. Sua escuridão não é edgy, mas profundamente humana. Cada releitura revela novas camadas:

  • Para o adolescente, é uma aventura sobre amigos e poderes.

  • Para o adulto, é um tratado sobre ética em um mundo sem deuses.

Togashi não oferece respostas porque sabe que a única resposta possível é viver a pergunta. Gon, Killua, Meruem — todos são versões de nós mesmos, perdidos em nossos labirintos pessoais, buscando saídas que talvez não existam.

Últimas Linhas: O Convite de Togashi

Ao fechar o último episódio, não somos os mesmos. Hunter x Hunter não entrega heróis para idolatrar ou lições para decorar. Ela nos entrega um espelho sujo de lama e sangue, onde enxergamos nosso rosto desfigurado — e, por algum milagre, sorrimos.

Togashi nos convida a fazer o mesmo:
"Sorria. Você está livre. Agora, o que vai fazer com isso?"

Nesse silêncio após a pergunta, reside toda a beleza — e todo o horror — de ser humano.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

2- Neon Genesis Evangelion: A Angústia Existencial, o Espelho Quebrado e a Busca por um 'Parabéns' em um Mundo sem Deus

3- Puella Magi Madoka Magica: Desespero, Sacrifício e a Desconstrução da Esperança