9- Fire Force: A Pirótécnica da Fé e A Vontade de Arder
(Há um limite para quantas vezes podemos reduzir o cinema a “mero entretenimento” antes de perdermos de vista sua capacidade de iluminar os abismos da psique humana. O gênero psicológico, longe de ser apenas um exercício de suspense, é um terreno fértil para explorar angústias universais — e poucas obras exemplificam isso com tanta maestria quanto Perfect Blue. Satoshi Kon não criou um filme; esculpiu um oráculo cinematográfico que antecipou, décadas antes da era das redes sociais, os horrores de uma sociedade que consome identidades como produtos. Aqui, a tela não é um portal de fuga, mas um espelho rachado, refletindo nossas próprias neuroses, voyeurismos e a sede doentia por autenticidade em um mundo de ficções.
Perfect Blue não é sobre entretenimento — é sobre sobrevivência existencial. Mima Kirigoe, a protagonista, não é uma heroína de enredo raso; é uma vítima e sobrevivente de um ecossistema que confunde persona com pessoa, e desejo com destruição. Sua jornada de ídolo pop a atriz não é uma simples mudança de carreira — é uma odisseia filosófica que questiona o preço da fama, a violência do olhar alheio e a ilusão de um “eu” autêntico. Enquanto obras superficiais se contentam em chocar, Kon nos arrasta para um labirinto onde realidade e delírio são fios da mesma teia, e cada reviravolta é um golpe contra nossas certezas mais frágeis.
Se há críticas à superficialidade de certas obras, Perfect Blue é a antítese. Cada frame é uma camada de significado: planos sequência que imitam a esquizofrenia, espelhos que multiplicam identidades fractais, e uma narrativa que desmonta a noção de “verdade” como um castelo de cartas. Kon não tem medo de nos fazer cúmplices do voyeurismo que critica. Quando a câmera invade a intimidade de Mima em cenas de tortura psicológica, não somos espectadores passivos — somos interrogados, forçados a confrontar nosso papel em uma cultura que transforma dor em espetáculo.
Sim, o cinema está saturado de histórias de trauma. Mas poucas ousam ser tão brutalmente honestas quanto Perfect Blue. Kon não oferece redenção fácil ou respostas reconfortantes. Seu final ambíguo — o sorriso enigmático de Mima — não é uma falha, mas um convite à reflexão: em um mundo que nos obriga a performar infinitas versões de nós mesmos, o que resta de autêntico? A resposta, como o “azul perfeito” do título, talvez não exista. E é nesse vazio que a obra encontra sua grandeza.
Por isso, ajustem suas lentes críticas. Perfect Blue não é um filme para ser assistido — é um campo de batalha intelectual, onde cada imagem, cada corte, cada grito é um desafio à nossa complacência. Se há obras que merecem ser chamadas de “esgoto cultural”, esta não está entre elas. Está no panteão daquelas que nos lembram: a verdadeira arte não acalenta — incendeia.
Então, respirem fundo. Porque mergulhar em Perfect Blue não é apenas assistir a um filme. É encarar o abismo de um mundo que já vivemos — e descobrir que o reflexo mais assustador não está na tela, mas dentro de nós.)
A obra é um diagnóstico feroz da pós-modernidade, onde identidades são mercadorias descartáveis e a conexão humana se reduz a likes, cartas obsessivas e fóruns anônimos. Satoshi Kon não usa metáforas — usa espelhos distorcidos. Cada cena é um jogo de reflexos: telas de TV que ecoam pensamentos, vitrines que multiplicam corpos, e celuloides que aprisionam almas. Mima, ao abandonar sua carreira como ídolo pop para se tornar atriz, não busca um novo papel — busca sobreviver em um palco onde o público exige sangue como ingresso. Sua transformação de "garota inocente" a "vítima sexualizada" em um filme B não é apenas um arco profissional; é um ritual de esfacelamento, onde cada close-up de sua nudez é um pedaço de sua identidade arrancado a força.
A genialidade de Kon está em transformar o espectador em cúmplice do crime. Através de planos sequência que embaralham passado e presente, cortes bruscos que imitam a fragmentação mental, e diálogos que ecoam como vozes em um corredor vazio, o diretor nos força a confrontar nossa própria voyeurismo. Assistir Perfect Blue não é um ato passivo — é um assédio coletivo, onde torcemos para que Mima escape de seus perseguidores enquanto consumimos cada segundo de seu sofrimento como entretenimento. A fama, na visão de Kon, é uma síndrome de Estocolmo em escala social: as vítimas (os ídolos) agradecem aos algozes (os fãs) pela dor, porque a dor é a única prova de que ainda existem.
O filme também é um tratado sobre a liquefação da identidade na era digital. O site "Mima's Room", que narra em tempo real os segredos de sua vida "íntima", é uma profecia sombria das redes sociais — um espaço onde a persona consome a pessoa, e fãs anônimos se tornam deuses menores, ditando quem ela deve ser. Mima não é hackeada; é desmontada, peça por peça, por um público que a ama tanto quanto deseja destruí-la. Sua busca por autenticidade é uma corrida contra o tempo em um mundo onde o "eu verdadeiro" é uma ilusão vendida em pacotes de 30 segundos.
Neste universo, até a violência é um espetáculo de quarta categoria. A cena do "estupro virtual" — onde Mima é penetrada não por um homem, mas por câmeras, holofotes e olhares famintos — é um dos momentos mais perturbadores do cinema. Não há corpo invadido, mas alma violada. Kon não mostra a agressão; mostra o rosto de Mima, um misto de terror e resignação, enquanto o diretor grita "Mais real! Mais real!". É uma crítica à indústria que confunde trauma com arte e exploração com profundidade.
Perfect Blue não é apenas um filme sobre perder a sanidade. É sobre perceber que a loucura é o único refúgio em um mundo que exige que você seja espelho, ídolo e mito — tudo, menos humana. E no centro desse furacão está Mima, uma mulher cujo nome significa "belo agora" em japonês, condenada a nunca mais saber se o que vê no espelho é real ou apenas mais um papel a ser desempenhado.
Aqui, o azul perfeito não existe — só tons manchados de suor, sangue e lágrimas.
A jornada de Mima Kirigoe em Perfect Blue transcende uma simples transição de carreira — é uma arqueologia do ser em um mundo onde identidades são mercadorias negociáveis e o "eu" é uma ficção coletiva. Satoshi Kon não narra uma história de ascensão ou queda, mas a dissolução do sujeito em um universo pós-moderno que confunde persona com pessoa, consumo com conexão, e voyeurismo com amor.
Jacques Lacan postulou que o "eu" se forma no estádio do espelho, quando a criança reconhece sua imagem refletida como uma totalidade ilusória — um ideal que perseguimos a vida toda. Em Perfect Blue, Mima vive uma versão pervertida desse estágio: seus espelhos são telas de TV, capas de revistas e os olhos famintos de fãs.
O Espelho Quebrado da Fama: Quando Mima abandona seu grupo de idol para se tornar atriz, ela não está trocando de profissão — está despedaçando o espelho lacaniano que a definia. O público, acostumado a vê-la como "a pura Mima-chan", reage como uma criança cujo reflexo foi alterado: com raiva, negação e violência.
O Outro como Carcereiro: Para Lacan, o "Outro" (a sociedade, a linguagem) define quem somos. Mima, porém, descobre que esse Outro é sádico. Seus fãs não a veem; veem uma projeção de inocência sexualizada. Quando ela tenta interpretar uma vítima de estupro em um filme B, o roteiro invade sua vida — egressos a confundem com a personagem, exigindo que ela permaneça a "vítima" em sua narrativa pessoal.
Jean Baudrillard argumentou que, na pós-modernidade, vivemos em um mundo de simulacros — cópias sem original, onde o real é substituído por hiperrealidades. Mima Kirigoe é um simulacro ambulante:
A "Mima Verdadeira" que Nunca Existiu: O álbum Perfect Blue (que dá nome ao filme) vende uma imagem de pureza intocável — um azul perfeito que, como o conceito baudrillardiano, não existe na natureza. Quando Mima rasga essa imagem ao aceitar papéis sombrios, seus fãs a acusam de "traição", pois preferem a cópia (a idol) à pessoa (a mulher).
O Site "Mima's Room": O Eu como Ficção Crowdsourced: O diário online que detalha sua vida íntima é uma profecia das redes sociais. Cada post é escrito por um fã anônimo, transformando Mima em uma personagem de ficção interativa. Aqui, Baudrillard sorri amargamente: a "verdadeira" Mima é apagada por uma narrativa coletiva, um simulacro mais "real" que ela própria.
Mima não é uma atriz — é uma sobrevivente de um teatro do absurdo. Cada papel que interpreta (a cantora, a vítima, a assassina) não são atuações, mas estratégias de existência:
O Papel da Vítima como Armadura: Na cena do "estupro virtual", Mima é penetrada não por um homem, mas por câmeras e olhares. Kon não mostra o corpo violado; mostra o rosto dela, um misto de terror e resignação. Ela não está atuando — está sobrevivendo, usando a personagem como escudo contra a violência real.
A Assassina como Libertação: Quando Mima interpreta uma serial killer no filme Double Bind, há uma perversa ironia. Enquanto mata no palco, ela mata simbolicamente as projeções que a aprisionam. A cena em que ela sussurra "Eu sou real" ao espelho é um grito lacaniano: uma tentativa desesperada de afirmar existência em um mundo que a reduz a imagem.
A crise de Mima não é pessoal — é sintoma de uma patologia coletiva. Seus fãs, o diretor do filme, até mesmo seu manager são participantes de um ritual onde consumir identidades substitui conexão humana:
O Stalker Me-Mania: O Fã como Inimigo Íntimo: Me-Mania não é um vilão isolado — é a encarnação do desejo doentio de posse que a cultura de fãs normaliza. Sua obsessão por "purificar" Mima (através de assassinatos) é um ato de fundamentalismo identitário: ele mata para preservar a ilusão de que ela ainda é "sua" Mima.
A Plateia como Juiz e Carrasco: Na cena final, quando Mima enfrenta seu duplo alucinado (a "verdadeira" Mima), Kon revela que o verdadeiro antagonista é o próprio espectador. Nós, que consumimos sua dor como entretenimento, somos cúmplices na construção de suas correntes.
Perfect Blue não oferece respostas — oferece um aviso. Em uma era onde identidades são perfis curáveis e o "eu" é um produto em constante rebranding, Mima Kirigoe é um farol trágico. Sua jornada nos pergunta: Quantas camadas podemos despir antes que nada sobre? E, mais crucialmente: Quem tem o direito de escrever nosso roteiro?
A resposta, como o azul perfeito do título, talvez não exista — mas a pergunta permanece, ecoando em cada like, cada follow, cada olhar que transforma pessoas em personagens.
Perfect Blue não expõe apenas a obsessão de um stalker — desnuda a necrose ética de uma sociedade que transforma corpos em territórios de conquista, onde o desejo não é afeto, mas posse, e o olhar não é conexão, mas violação. Me-Mania, o stalker que persegue Mima, não é um monstro isolado; é o sintoma extremo de uma cultura que normaliza o consumo de pessoas como produtos. Sua obsessão não é por Mima, mas pelo fantasma projetado nela — uma construção de pureza e inocência que ele mesmo ajudou a fabricar, como um escultor que odeia sua estátua por não respirar.
A cena do "estupro virtual" é um dos momentos mais geniais e perturbadores do cinema, não pela violência explícita, mas pela crueza metafórica. Enquanto Mima é penetrada por câmeras, holofotes e olhares famintos em um set de filmagem, Satoshi Kon revela que o verdadeiro estupro não é físico, mas epistemológico. Cada close de seu corpo nu não serve ao erotismo; serve à desmontagem sistemática de sua subjetividade. A câmera aqui é um bisturi, e o diretor (dentro e fora da tela) é um cirurgião que extrai pedaços de sua alma para alimentar a plateia. Não há sangue, mas há sangria existencial: Mima não perde a virgindade, perde o direito de ser dona de sua própria narrativa.
Kon critica uma dinâmica social onde fãs são coautores involuntários — e algozes — da identidade alheia. O site "Mima's Room", que narra supostos segredos de sua vida íntima, é uma profecia das redes sociais, onde fóruns anônimos e comentários moldam personas como deuses brincando com barro. Cada email anônimo, cada carta assinada por "seu maior fã", é um projétil de afeto tóxico, uma declaração de amor que se confunde com decreto de posse. Me-Mania é apenas o elo mais visível de uma cadeia que inclui diretores, colegas de elenco e até espectadores — todos consumindo Mima como se ela fosse um prato degustação, onde cada garfada é um pedido de autenticidade que ninguém está disposto a digerir.
O corpo feminino, neste contexto, não é um templo — é um palco de guerra. A nudez de Mima não é sensualidade; é estupro simbólico, uma exposição forçada que a reduz a um objeto de estudo. Enquanto a câmera a circunda como um abutre, Kon nos lembra que o olhar masculino (seja do stalker, do diretor ou do público) é uma forma de poder colonial: um ato de dominar, catalogar e controlar. A cena ecoa Foucault — vigiar e punir não é apenas sobre prisões, mas sobre a ditadura do olhar que transforma mulheres em espécimes sob vidro.
Mas há uma ironia cruel aqui: Mima precisa dessa violência para existir. Sua carreira depende de ser vista, desejada e consumida. Kon não a retrata como vítima passiva, mas como gladiadora de um circo midiático, onde sobreviver exige negociar com os leões que a devoram. Quando ela sussurra "Eu sou real" ao espelho, não é um grito de vitória, mas de desespero ontológico — uma tentativa de afirmar existência em um mundo que só valoriza cópias.
A obra também é um comentário sobre a banalização do trauma. A cultura pop trata violência como espetáculo, e Kon expõe essa lógica ao extremo: as cenas de terror que Mima interpreta no filme Double Bind são espelhos de sua própria vida, onde a ficção e a realidade se fundem em um pesadelo sem fronteiras. O público, assim como os fãs de Mima, não quer salvá-la — quer vê-la sofrer de novo, porque o sofrimento é a única prova de que ela ainda é "real".
No fim, Perfect Blue não é sobre um stalker ou uma estrela em queda. É sobre o preço de existir em um mundo onde ser visto é sinônimo de ser devorado. Cada olhar é uma faca, cada aplauso é uma cela, e cada fã é um carrasco que ama tanto que mata — não por ódio, mas por uma distorção doentia de amor. Kon não nos dá respostas, mas nos obriga a encarar o abismo: quantos pedaços de nós mesmos estamos dispostos a vender para sermos amados? E, pior, quantos pedaços arrancamos dos outros sem perguntar?
Perfect Blue não é apenas uma crítica à indústria do entretenimento — é um tratado sobre a sacralização do profano, onde ídolos pop ocupam o vácuo deixado por deuses mortos, e fãs se transformam em devotos de uma fé sem transcendência, apenas consumo. Mima Kirigoe, em sua jornada de idol a atriz, torna-se involuntariamente uma divindade secular, uma virgem sacrificial de um panteão capitalista onde mitos não são escritos em pergaminhos, mas em contratos de gravadora e cláusulas de imagem. Seu álbum Perfect Blue não é um disco — é uma relíquia sagrada, prometendo um "azul perfeito" de pureza inatingível, um Éden sonhado por fãs que confundem adoração com posse. Quando ela ousa descer do altar, trocando véus de inocência por papéis que expõem sua humanidade (e sexualidade), sua queda não é pessoal — é a queda do Éden pós-moderno, onde pecado não é desobediência divina, mas a audácia de ser humana em um mundo que exige deuses de plástico.
Me-Mania, o stalker, não é um mero criminoso — é o sumo sacerdote dessa religião invertida, um fanático cuja devoção se alimenta da necessidade patológica de manter Mima presa ao altar que ele mesmo ergueu. Sua obsessão não é amor; é liturgia. Cada carta que escreve, cada passo que a segue, cada assassinato que comete em seu nome são rituais de um culto doente, onde "provar devoção" exige violência. Ele não a persegue por ódio, mas por fé — uma fé que, como a dos inquisidores medievais, justifica atrocidades em nome da "purificação". Quando ele a ataca, não é para destruí-la, mas para preservar o mito da Mima intocável, a deusa que ele recusa ver humanizada. Sua faca não é uma arma, mas um instrumento de sacramentos perversos, uma hóstia ensanguentada oferecida a um deus que não pediu, mas que a cultura do espetáculo criou.
A relação entre Mima e seus fãs ecoa a dialética mestre-escravo hegeliana, mas com uma torção teológica: ela é simultaneamente deusa e escrava, objeto de adoração e sacrifício. Seus seguidores não a veneram por sua essência — veneram a projeção coletiva de inocência que construíram, um ídolo de barro que eles mesmos esculpiram e que agora exigem que ela encarne. Quando ela falha em ser a "Mima verdadeira" (um conceito que nem ela mesma compreende), a punição é imediata: cartas de ódio, ameaças de morte, a violência de uma fé traída. É a mesma lógica que moveu caças às bruxas e autos-de-fé — o pânico sagrado de quem vê seu deus falhar, e responde com fogueiras.
Nessa dinâmica, até a violência sexual é santificada. A cena em que Mima é "estuprada" por câmeras durante as filmagens de Double Bind não é acidente — é um rito de passagem em um mundo onde o corpo feminino é ao mesmo tempo templo e oferenda. Sua nudez não é sobre erotismo, mas sobre expiação: ela deve ser despojada de sua humanidade (sua roupa, sua privacidade) para se tornar virgem novamente, pura o suficiente para ser consumida. O paradoxo é devastador: para permanecer santa, ela precisa ser profanada — repetidamente — pela mesma audiência que a idolatra.
A obra de Kon expõe como a religião do consumo substituiu a espiritualidade tradicional. Os fãs de Mima não rezam — consomem. Suas orações são streams, seus templos são cinemas, e sua comunhão é o ato de devorar imagens. Me-Mania é o mártir extremo dessa fé doente, um cruzado que mata e morre por uma causa vazia, enquanto Mima, como Cristo em uma alegoria blasfema, é crucificada não por salvar a humanidade, mas por ousar escapar dela. Seu grito final — "Eu sou real!" — ecoa no vácuo de um mundo onde o real foi substituído por simulacros, e a única ressurreição possível é a que acontece nas telas, em loops infinitos de dor espetacularizada.
Perfect Blue não condena a fé — condena a perversão da fé em ferramenta de controle. Mima não é Judas, nem Lúcifer; é uma mulher presa em um jogo onde ser deusa é sentença de morte, e ser humana é pecado capital. Seus fãs não são demônios — são crentes órfãos, buscando significado em um mundo que trocou o divino pelo digital, e transcendência por trending topics. Kon nos deixa uma pergunta incômoda: quem, no fim, é mais fanático — o stalker que mata em nome de um ídolo, ou a sociedade que mataria por um like?
Perfect Blue não é filmado — é possuído. Satoshi Kon não usa a câmera como ferramenta de narrativa, mas como cúmplice de um crime metafísico, onde espectador e personagem são amarrados à mesma cadeira de interrogatório. Cada plano sequência que embaralha realidade e delírio, cada corte abrupto que simula a esquizofrenia, cada reflexo distorcido em vitrines sujas não são recursos estilísticos — são sintomas de uma doença coletiva, a mesma que confunde voyeurismo com empatia e consumo com conexão. Kon não quer que você assista; quer que você se reconheça na engrenagem que tritura Mima.
A cena do assassinato no banheiro, com seu sangue estilizado em jatos de tinta expressionista, é um golpe de gênio perverso. O vermelho não escorre de feridas físicas — jorra da tela, manchando a quarta parede e borrando a linha entre o que é real dentro e fora do filme. Não é acidente que o sangue pareça tinta: Kon nos lembra que a violência que consumimos é arte abstrata, uma composição de cores e gritos que emolduramos em nossas paredes mentais. O espectador, aqui, é pego em flagrante — suas mãos sujas de vermelho simbólico, sua culpa escondida sob o disfarce de "apenas entretenimento".
Os espelhos, onipresentes na obra, não refletem — deformam. Cada imagem de Mima multiplicada em vidraças, telas e olhos alheios é um retrato da fratura identitária pós-moderna, onde o eu é uma colagem de reflexos roubados. Quando ela corre de um corredor a outro, perseguida por versões fantasmas de si mesma (a idol, a atriz, a assassina), Kon desenha um labirinto que não existe no espaço, mas na mente. Não há saída, porque o labirinto somos nós — espectadores que exigimos que ela seja tudo, menos humana, e depois nos horrorizamos quando ela enlouquece.
O final, com Mima sorrindo enigmática no banco do carro, é uma bomba filosófica. Aquele sorriso não é alívio, cura ou loucura — é rendição a um jogo sem vencedores. Kon se recusa a responder se ela superou o trauma ou se tornou outra persona, porque a pergunta em si é uma armadilha. A demanda por um "desfecho" é parte da mesma lógica que a consumiu: a necessidade de narrativas fechadas, onde dor tem significado e sobrevivência é redenção. Mima não deve nada a ninguém — nem mesmo uma conclusão. Seu sorriso é um espelho vazio, um convite para que o espectador preencha o vazio com suas próprias neuroses, medos e desejos.
A genialidade de Kon está em transformar a linguagem cinematográfica em psicose dirigida. Planos que começam subjetivos (olhos de Mima) e se tornam objetivos (câmeras de segurança) imitam a dissociação de quem não sabe mais onde termina a pele e começa o mundo. Cortes bruscos entre ensaios de atuação e "cenas reais" não são transições — são surtos editados, ataques de pânico visualizados em celuloide. Até a trilha sonora, que oscila entre melodias pop infantis e ruídos dissonantes, é uma alucinação auditiva, um eco da mente de Mima despedaçando-se entre a inocência perdida e a violência necessária.
E no centro disso tudo está o espectador, tão culpado quanto Me-Mania. Kon nos força a encarar que assistir Perfect Blue não é passivo — é assinar um pacto silencioso com a máquina que devora Mima. Cada vez que sorrimos com o charme de sua personagem, cada vez que torcemos por sua "superação", estamos alimentando o mesmo sistema que a obrigou a se despir, sangrar e mentir. O filme não termina com créditos — termina com um silêncio acusador, onde a única resposta possível é um incômodo no estômago e uma pergunta que não ousa ser verbalizada: Quantas Mimas já consumi hoje?
A arte de Kon não é sobre delírio. É sobre acordar para o pesadelo de que todos somos, em algum nível, diretores do próprio Perfect Blue — e as câmeras estão sempre rolando.
Perfect Blue não é uma obra à prova de contradições — é um labirinto ético onde as mesmas ferramentas usadas para criticar a violência correm o risco de reproduzi-la. Satoshi Kon, ao expor a mecânica perversa da objetificação feminina, enfrenta um dilema ancestral da arte engajada: como denunciar um sistema sem replicar seus vícios? A resposta, aqui, é ambígua. A cena do "estupro virtual", por exemplo, é um exercício de genialidade técnica e um precipício moral. Enquanto as câmeras circulam Mima como abutres, Kon nos obriga a confrontar nosso voyeurismo, mas também nos transforma em cúmplices involuntários do ato que condenamos. O sangue estilizado, os gritos abafados, a nudez exposta como espetáculo — tudo isso serve à crítica, mas também alimenta o mesmo apetite mórbido que o filme busca expor. É um paradoxo que ecoa a armadilha da sociedade do espetáculo: a violência como mercadoria só perde valor quando deixamos de consumi-la, mas como denunciá-la sem exibi-la?
A ambiguidade se estende à construção de Mima como personagem. Apesar de sua complexidade — uma mulher fragmentada entre papéis impostos —, ela permanece refém de traumas masculinos. Seu arco é uma sucessão de violências: assediada pelo diretor, perseguida pelo stalker, pressionada pelos fãs. Sua agência, quando existe, é reação, nunca ação. Em um momento crucial, ela mata seu duplo alucinado (a "verdadeira" Mima), mas mesmo esse ato de autodefesa é uma resposta à narrativa escrita por outros. Kon, ao retratá-la como vítima eterna, acaba por confirmar a dinâmica que busca criticar: a mulher como território de guerra, definida por invasões alheias. Não há espaço para que ela transcenda o trauma — apenas para que o internalize, transformando-o em performance. É aqui que a obra esbarra em uma crítica feminista crucial: pode uma narrativa sobre despossessão evitar despossuir sua protagonista de autonomia?
A ambiguidade do final — o sorriso enigmático de Mima no banco do carro — não resolve, mas aprofunda a contradição. Seu rosto sereno pode ser lido como cura, mas também como rendição à lógica do espetáculo. Ela não escapa; adapta-se. A mensagem é perturbadora: em um mundo que consome identidades, sobreviver exige tornar-se um fantasma que dança conforme a música dos holofotes. Kon, ao negar uma conclusão redentora, mantém a integridade artística, mas reforça a ideia de que a libertação feminina é um mito em uma estrutura que só permite sobrevivência, nunca revolução.
A obra também enfrenta a acusação de fetichizar o sofrimento feminino como arte elevada. As cenas de tortura psicológica de Mima são filmadas com uma estética quase onírica — cores saturadas, ângulos oblíquos, trilha sonora hipnótica —, o que pode transformar a dor em espetáculo. A mesma linguagem que denuncia a cultura do consumo acaba embrulhando o trauma em um pacote esteticamente palatável, como se a violência ganhasse valor por ser bela. É uma armadilha que Susan Sontag anteviu em Sobre a Fotografia: a beleza pode corromper até a mais legítima das denúncias, convertendo horror em commodity.
Por fim, Perfect Blue padece de uma ironia cruel: é uma obra tão brilhante quanto aprisionadora. Ao desmontar a máquina que tritura mulheres, Kon aciona suas engrenagens mais uma vez, usando Mima como combustível. O filme não falha em sua crítica — falha em escapar do que critica. E talvez essa seja sua lição mais dura: na era do consumo total, até a denúncia é devorada e digerida como entretenimento. Resta ao espectador a escolha entre aplaudir o espelho ou estilhaçá-lo — sabendo que, de um jeito ou de outro, os cacos continuarão a refletir seu rosto.
Kon não nos oferece um desfecho, porque desfechos são luxos de narrativas que ainda acreditam em verdades absolutas. Em vez disso, ele nos entrega um vazio performático, um palco vazio onde o espectador é obrigado a encenar seu próprio papel. A pergunta não é se Mima sobreviveu ao delírio, mas se nós sobreviveremos ao nosso. Vivemos em uma era onde cada like é uma máscara, cada post uma persona, e cada selfie um ato de autonegação. Perfect Blue anteviu isso décadas antes do Instagram, TikTok ou deepfakes — e sua profecia é mais urgente que nunca.
A genialidade da obra está em sua honestidade brutal. Kon não romantiza a resistência nem vende a ilusão de que "ser você mesmo" é possível em um mundo que exige versões infinitas de si. Mima não é heroína nem vítima: é sintoma de uma doença coletiva, a mesma que nos faz perseguir influencers como se fossem messias e consumir tragédias alheias como se fossem episódios de uma série. O filme nos lembra que, ao clicar em "play", não somos inocentes — somos cúmplices do sistema que devora Mimas todos os dias, transformando sonhos em content e pessoas em avatares.
A violência em Perfect Blue não está nas facadas, mas na banalização do eu. Cada cena de assédio, cada close-up de nudez, cada carta anônima é um tijolo em um muro que aprisiona Mima em uma cela de expectativas alheias. E ainda assim, há beleza nessa desgraça. Kon nos mostra que, mesmo rachado, o espelho ainda reflete — e talvez, na aceitação da fragmentação, haja uma forma torta de liberdade. Mima não precisa mais ser "pura", "vítima" ou "assassina". Ela é tudo e nada, um borrão de tinta azul em um universo que insiste em preto e branco.
Última Linha:
Perfect Blue não
é sobre perder a sanidade. É sobre descobrir que a
loucura é o último refúgio de humanidade em um mundo que te obriga
a ser tudo, menos real — e que, às vezes, o único
modo de sobreviver é rir, em silêncio, da piada cósmica de
existir.
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